Ao completar 18 anos, Marielle Amaral, hoje com 31, partiu de Sabinópolis, na região do Rio Doce, em um ônibus com destino a Belo Horizonte, para trabalhar como empregada doméstica. O fim da adolescência e a entrada na vida adulta dela coincidiram com o início de uma série de mudanças na legislação trabalhista, que, em 2010, deu os primeiros passos em direção à regulamentação.
Há 13 anos, quando Marielle ocupou seu primeiro quartinho de empregada, a PEC das Domésticas e a Lei Complementar 150 – que completa cinco anos neste mês – ainda não existiam. “Foi um susto, não acreditávamos que ia passar”, ela relembra.
Cinco anos após a lei que determinou o recolhimento do FGTS e o pagamento do seguro-desemprego da categoria, a legislação ainda contém falhas. Patrões que encontram artifícios para burlar a arrecadação, horários estendidos e acúmulo de funções são apenas algumas das questões não sanadas. A impossibilidade da fiscalização completa o volume de problemas encarados por elas.
O professor Cristiano Rodrigues, do Departamento de Ciências Políticas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), defende que, apesar de a lei dado atenção às peculiaridades da ocupação, ela não é suficiente para romper com o ciclo de infrações aos direitos determinados.
“Existe uma tendência em burlar a lei porque é difícil assegurar seu cumprimento. Como é que os órgãos podem estar nas residências acompanhando as empregadas para garantir que elas trabalhem oito horas por dia? Para ter certeza de que elas batem ponto? Para determinar que o salário pago seja o declarado nas carteiras?”, questiona o pesquisador.
Apesar disso, a determinação legal dos direitos das domésticas trouxe benefícios historicamente negados a elas – cerca de sete décadas separam a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) dos primeiros ensaios para a PEC das Domésticas.
Além do seguro-desemprego, que proporcionou certa tranquilidade a muitas trabalhadoras, a lei tem cunho simbólico, como argumenta a mestranda em direito pela UFMG Marianna Lopes.
“O mais importante da lei é o simbolismo. Até cinco anos atrás, os trabalhadores em ambiente doméstico não eram protegidos pela CLT. Mas, apesar dos benefícios trazidos pela lei, como a determinação de uma jornada máxima de oito horas por dia, quase todos os direitos podem ser ajustados em um contrato entre empregado e empregador, sem assistência de um sindicato, por exemplo. Na prática, representa que a vontade do empregador será quase sempre cumprida. Com a lei, muitos patrões optaram por não assinar a carteira e reduzir a carga de trabalho para dois dias, de modo que não configure relação trabalhista. Hoje, a maior parte das mulheres negras continua na informalidade”, explica Marianna.
Instrumento legal não acarretou em mudanças no cotidiano, mas trouxe alívio
O primeiro salário recebido por Marielle Amaral após a aprovação da Lei Complementar 150, publicada no "Diário Oficial da União" no segundo dia de junho de 2015, bastou para que ela entendesse que o cumprimento dos direitos trabalhistas não seria seguido à risca.
"Quando aprovaram a lei que acrescentava a arrecadação do fundo de garantia à PEC das Domésticas e outros encargos, eu trabalhava com uma família. Depois da aprovação, meu patrão entregou meu salário com menos que eu recebia. Eu o questionei e falei que o pagamento não era certo, e ele disse: ‘Agora que vocês têm mais direitos, vou descontar do salário’. Eu discordei, disse que o fundo de garantia não poderia ser descontado do meu salário. Ele precisou ligar para o contador e ficou muito nervoso”, relembra.
Apesar das dificuldades encontradas, a certeza do fundo de garantia e do seguro-desemprego gerou alívio para ela e tantas milhares de empregadas no Brasil que, antes da legislação específica, não podiam acessar direitos comuns a outros trabalhadores após demissões.
Até a aprovação da lei, cabia à família empregadora decidir como pagaria a doméstica após demiti-la. “Até então, quando era dispensada, a única coisa que a empregada tinha direito era a 13° salário e um terço de férias. Eu vivi isso em dois empregos, um em 2010 e outro em 2012. Quando nós não tínhamos os direitos, era um desespero quando o patrão dispensava. Com um ou dois meses precisava estar empregada de novo. Fui obrigada algumas vezes a manter emprego querendo sair. Agora temos certa estabilidade”, explica.
Se por um lado, grandes mudanças puderam ser sentidas na prática, por outro, houve pouca diferença na rotina diária das empregadas domésticas. Algumas determinações contidas na Lei Complementar 150, entre elas o regime de 44 horas semanais de serviço e o horário de almoço, são passíveis de serem acertadas pelos próprios empregadores mediante acordo por escrito.
Outras, como o adicional noturno e a remuneração para trabalhadoras que acompanham famílias durante viagens, sequer são comentadas e até ignoradas pelas famílias que contratam as empregadas.
“A mudança na jornada de trabalho, por exemplo, pode ser ajustada através de acordos escritos. O patrão pode querer escolher a escala do trabalhador, se ele atua de dia ou no período da noite. Essas questões podem ser ajustadas, o que acaba tornando-se um empecilho para a empregada. A redução no horário de almoço também pode ser determinada por acordo entre empregador e empregado. A Lei Complementar reforça dispositivos da CLT e contempla, por exemplo, um adicional para empregadas que viajam com as famílias. Segundo a lei, o trabalhador tem um horário para cumprir mesmo em viagens. Só que isso não acontece, se ela viajou com a família é como se ela ficasse disponível o tempo inteiro”, detalha Marianna Lopes.
Cinco anos após a aprovação da lei, Marielle Amaral concorda não ter notado mudanças na realidade cotidiana do ambiente doméstico. Empregada e babá há mais de uma década, ela reforça que alguns dos direitos determinados pela legislação acabam submetidos a um acordo tácito entre patrões e empregadas.
“Não mudou muito no dia a dia. A questão das 44 horas semanais, por exemplo, determina oito horas por dia e quatro aos sábados. Só que muitos patrões não querem gastar um dia de passagem para uma empregada que vai trabalhar só quatro horas. Em um dos meus empregos, os patrões acordaram que eu trabalharia nove horas por dia de segunda a quinta-feira para compensar as quatro horas do sábado, e na sexta-feira eu trabalhava as oito horas. O horário de almoço também é muito flexibilizado. Nós almoçamos rapidinho, 15 ou 30 minutos. Raramente você vai ver uma empregada que tem uma hora de almoço. A gente flexibiliza para manter o emprego, se sujeita a muitas coisas. Quem é empregada doméstica sabe da dificuldade para manter o emprego”, detalha Marielle.
Além dos acordos permitidos pelo texto da lei, artifícios jurídicos também se tornaram parte da rotina de certos empregadores no instante da contratação. Entre as estratégias mais corriqueiras está a assinatura da carteira de trabalho com um salário menor àquele efetivamente pago à trabalhadora. Este mecanismo garante que o recolhimento do fundo de garantia seja menor que se o empregador declarasse na carteira o real salário.
“Acontece de muitos patrões assinarem a carteira só com o valor do salário mínimo e pagar o restante por fora. São poucas as empregadas domésticas que têm carteira assinada com o valor que realmente recebe. A gente chega para ser contratada, e o patrão fala que vai assinar o salário mínimo porque diminui o valor dos encargos. Nenhuma empregada gosta. Hoje, em todas as casas que eu chego para trabalhar, falo que prefiro ganhar o salário assinado na carteira, mas a gente precisa aceitar certas condições. É uma prática normal”, relata.
Apesar de ter garantida a permanência no emprego após a PEC e a Lei Complementar 150, Marielle relembra que amigas acabaram desligadas, ou por patrões que se recusaram a arcar com os direitos determinados, ou por famílias afetadas pela crise econômica e que precisaram dispensar suas empregadas.
“Muitas perderam os empregos. Algumas tiveram os dias de trabalho reduzidos para dois, exatamente porque os patrões não queriam pagar os direitos”, pondera. A percepção dela é real, corroborada pelo estudo mais recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) que apontou para um aumento no índice de informalidade do trabalho doméstico no Brasil – cerca de 30% das empregadas tinham carteira assinada em 2013, o número caiu para 28% cinco anos depois.
A cuidadora Leila Cristina de Oliveira, 40, está entre as mulheres que exercem trabalhos domésticos e optaram por não manter vínculo com o empregador. Sem carteira assinada, ela escolhe exercer sua profissão mantendo um cadastro no sistema de Microempreendedor Individual (MEI).
“Quando trabalhei de carteira assinada, ainda não existia a lei. Há alguns anos comecei a trabalhar como MEI. É mais vantajoso financeiramente para mim que também tenho uma cozinha particular”, esclarece Leila.
Como é o trabalho doméstico no Brasil?
Retrato sociodemográfico do IPEA aponta que cerca de seis milhões de brasileiros se dedicam à prestação de serviços domésticos. São diaristas, babás, cuidadoras, motoristas e jardineiros, além das empregadas domésticas. A maior parte deles – aproximadamente 92% – são mulheres, em sua maioria negras, com pouca escolaridade e oriundas de famílias de baixa renda.
A dependência financeira dos patrões obriga muitas a acatarem condições de trabalho precarizadas e até humilhantes.
“Quando ocorreu a abolição, não houve uma política de integração da população negra ao mercado, à educação. O legado do trabalho doméstico é diretamente ligado à escravidão. O modo como essas relações de trabalho se estruturam hoje também estão ligadas ao passado. O trabalho doméstico oscila entre a informalidade e a precariedade”, detalha Cristiano Rodrigues, do departamento de Ciências Políticas da UFMG.
Melhorias na condição financeira dessas mulheres que atuam no ambiente doméstico estão diretamente relacionadas à ascensão econômica do país, como defende Rodrigues. O fato por ele apontado é reforçado pelo estudo do IPEA. Segundo a análise estatística, houve uma redução recente na parcela de mulheres que ocupam cargos domésticos.
O instituto destaca que a ampliação do acesso à escolaridade iniciado há cerca de duas décadas é uma das razões para que jovens optem por outras atividades no mercado de trabalho hoje.
Quando você tem uma melhoria nas condições de vida e na economia, como vivemos na primeira década dos anos 2000 no Brasil, as trabalhadoras domésticas vão abandonando rapidamente esses postos e seguem para outros espaços mais profissionalizados. Elas podem exercer atividades semelhantes àquelas que já estavam executando, mas em um ambiente mais seguro, como os hotéis e os restaurantes”, pondera.
Abandonar a rotina áspera do trabalho doméstico está nos planos de Marielle Amaral para os próximos meses. Doze anos após sua chegada a Belo Horizonte com as malas carregadas do sonho de formar-se em uma faculdade, ela alcançou o diploma de graduação em história no ano passado e pretende dedicar-se à profissão escolhida no próximo ano.
Vinda de uma geração de mulheres empregadas domésticas, Marielle está entre aquelas que romperam um ciclo perpetuado de mineiras retiradas de suas cidades para ocupar cargos de empregada na capital mineira.
“Lembro do primeiro quarto de empregada em que morei. Quando eu cheguei tinha muitos sonhos, e com o tempo todos foram morrendo. Às vezes eu achava que não conseguiria terminar a faculdade, que era meu sonho”, relembra ela que, no momento de sua colação de grau, estendeu sobre o auditório uma faixa com ditos contidos na garganta nos anos anteriores: “Empregada doméstica também faz faculdade”.