A precarização do trabalho de entregadores e motoristas de aplicativo é velha conhecida e uma discussão que está chegando, inclusive, ao governo federal — o presidente Lula (PT), diz, desde sua campanha, que planeja regulamentar a profissão. Ao mesmo tempo, as plataformas estendem seu poder para outros setores e, hoje, alcançam inclusive profissões que exigem alta qualificação acadêmica, como advogados, psicólogos e redatores publicitários. Profissionais dos mais diversos ramos tornam-se, agora, uma espécie de “motoristas de Uber”, em um cenário no qual as empresas ditam todas as regras e o governo, por enquanto, não interfere.
No Brasil, segundo um levantamento realizado pela Fundação Getulio Vargas em 2022, há pelo menos 77 empresas da “gig economy”, termo utilizado para descrever serviços em que o trabalhador atua para uma plataforma por demanda. A maior parte, 24 delas, é de entrega de delivery, mas elas também estão nos ramos de saúde e bem-estar, advocacia, cuidados com crianças e com pets, por exemplo.
Quando o jornalista Marcelo Faria deixou o trabalho de carteira assinada em uma empresa e passou a produzir textos como freelancer em uma plataforma de conteúdo, sua rotina mudou de ritmo. “Eu com certeza trabalhava mais. Todos os dias, começava por volta das 8h e ia até 20h, 20h30. O fluxo de tarefas sempre foi infinito, mas havia trabalhos melhor remunerados que, em uma época, sumiram. Faço um paralelo com a Uber, em que os motoristas ganhavam muita grana no começo. Depois, comecei a ganhar quase metade do que antes”, conta. A empresa para a qual ele prestava serviço oferece mão-de-obra freelancer para centenas de outras companhias que precisam de textos para blogs. Como um motorista de aplicativo, ele era avaliado por notas dos clientes na plataforma e o volume e qualidade das tarefas que recebia dependia, em parte, dessa avaliação.
A socióloga Ana Claudia Moreira Cardoso se dedica ao estudo da “plataformização” da economia e examina que o processo começou em setores que já eram pouco regulamentados, como o de transporte, e chega em velocidade acelerada aos demais. “Por que essas empresas-plataforma entraram primeiro em alguns setores e não nos mais regulados? Imagine se, lá em 2014 [quando o Uber chegou ao Brasil], entrassem no setor de saúde, educação, no bancário. A resistência seria muito grande, porque as pessoas sairiam de um trabalho regulado, com certa qualidade, para outro totalmente desregulado. As empresas, então, entraram em setores já precários, porque evidentemente enfrentam uma resistência menor. Os trabalhadores reclamariam menos porque já estavam precarizados, o Estado reclamaria menos porque naturalizou essa precariedade e os clientes também. Faço analogia com o uso da datilografia, que evoluiu e, hoje, teclamos pelo relógio. Não existe a possibilidade de retroceder”, diz.
Já disseminada para o setor de advocacia, por exemplo, hoje a tecnologia, por um lado, agiliza serviços e abre portas para profissionais em início de carreira ou com dificuldade em encontrar um novo emprego nos moldes tradicionais. Por outro, avalia a presidente da Comissão de Gestão, Empreendedorismo e Inovação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG), Michelle Higino, remunera mal e fragiliza as condições de trabalho. “Há críticas muito fortes sobre os valores nessas plataformas e sobre o sucateamento do trabalho advocatício. Em algumas, o trabalho vira um leilão de quem dá menos e uma competição desleal, em que se trabalha para sobreviver”, diz. A FGV identificou nove plataformas de advocacia e similares no Brasil — elas permitem, por exemplo, que escritórios contratem advogados por demanda.
No ramo de saúde e bem-estar, o estudo encontrou sete iniciativas. Para o psicólogo Vinícius Diniz, trabalhar em uma plataforma de atendimento online foi uma forma de ter um portfólio consistente de clientes em apenas dois anos de carreira, conta. Ele paga um pacote periódico ao site que permite que pacientes o encontrem buscando palavras-chave, como “ansiedade” e “conflitos familiares”. Além disso, seu perfil é destacado recorrentemente para aparecer para mais clientes. O problema, segundo ele, é quando os convênios médicos entram na equação. “Eles repassam um valor quase simbólico para a gente, às vezes de R$ 20, R$ 30, aí o profissional tem que trabalhar por quantidade. Conheço colegas que só trabalham com convênios nas plataformas e atendem 40, 60 pessoas por semana, o que é muita coisa”, conclui.
Ministério do Trabalho discute regulamentação dos trabalhadores “plataformizados”
O Ministério do Trabalho está formando uma comissão para discutir a regulação do trabalho por aplicativo — promessa de campanha de Lula que já havia sido mencionada, também, pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, acenou recentemente a esses trabalhadores: “A minha preocupação é com os trabalhadores e trabalhadoras, são eles que nós queremos proteger, porque as empresas estão explorando demais essa mão de obra. O que não é possível é a desproteção. Hoje, existem milhões de trabalhadores, no mundo inteiro, não só na realidade do Brasil, trabalhando absolutamente sem nenhuma proteção social”, declarou, em entrevista à “TV Brasil” neste mês.
Em 2012, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi atualizada com um parágrafo que equipara os meios virtuais de trabalho aos presenciais, lembra a professora de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e advogada Daniela Muradas. Ela avalia que isso fornece a base para regulamentar o trabalho por meio de plataformas. “A legislação reconhece que o trabalho da pessoa, executado de modo não eventual, remunerado e estando sob subordinação estrutural pode ser caracterizado como emprego. Os direitos dos trabalhadores ‘plataformizados’ sempre foram sonegados. Com uma regulamentação, ele passa a ser um cidadão com direitos constitucionais, como direito ao salário mínimo e limitação da jornada de trabalho. As estruturas tecnológicas atuais estão colocando o trabalhador brasileiro em um retrocesso social histórico”, pondera.
A socióloga Ana Claudia Moreira Cardoso concorda e acrescenta que, passados anos desde que as plataformas se estabeleceram no país, já não são uma novidade e seus mecanismos são conhecidos o bastante para serem regulados. “Não temos que inventar a roda, a CLT está aí. Claro que teremos que mexer nela, porque, na época em que foi feita, os algoritmos não existiam. Mas, quando vemos o monte de Projetos de Lei no Congresso sobre o tema, a maioria defende menos direitos do que está na CLT e querem criar um trabalhador de segunda classe”, ajuiza.
Ela avalia que é importante focar na situação dos entregadores e motoristas, que são a grande massa de “plataformizados” no país, mas defende que esse seja apenas o primeiro passo para ampliar a discussão sobre os demais setores. “O que não pode é achar que só existem plataformas nesses dois setores. Se o governo resolver os dois e tiver uma agenda de médio prazo, pelo menos, para os outros, está encaminhado. As empresas ameaçam sair do Brasil se houver regulamentação, mas elas sempre usaram essa ameaça”, conclui.