Em 2014, por ocasião dos 50 anos da personagem Mafalda, sua mais famosa criação, o cartunista argentino Quino afirmou, em uma rara e exclusiva entrevista à Agência Efe: “Sou como um carpinteiro que fabrica um móvel, e Mafalda é um móvel que fez sucesso, lindo, mas para mim continua sendo um móvel”. Em sua humilde tentativa de fugir da autoveneração, Quino acabou por revelar um traço marcante em sua personalidade: de hábitos reclusos, não era chegado aos holofotes e construiu sua trajetória não por outros motivos além da virtude artística.

Assim, recluso, estava nos últimos anos em Mendoza, sua cidade natal. Quino morreu nesta quarta-feira (30), aos 88 anos, e sua obra é, mais uma vez, celebrada em todo o mundo como o legado de um pensador universal que colocou seu traço a serviço da cultura e da luta contra injustiças de toda ordem. Na semana passada, de acordo com informações do jornal argentino “Clarín”, ele sofreu um AVC e seu estado de saúde piorou muito. 

Não faz muito tempo que o ilustrador e humorista gráfico argentino Miguel Rep conversou pela última vez com Quino. Amigos há 35 anos, Rep, em Buenos Aires, ligou para o aniversariante naquele 17 de julho, que se encontrava em Mendoza, a mais de mil quilômetros da capital argentina. “Eu lhe perguntei: ‘Como vai, Quino?’. Ele me respondeu: ‘Está nublado’. Disse que assim que liberassem os voos eu iria até lá dar um beijo na boca dele, e ele riu. O último que escutei dele foi: ‘Tchau, Miguelito’, com aquele sotaquezinho com restos andaluzes de que nunca vou me esquecer”, conta Rep, em depoimento ao Magazine

O ilustrador diz que agora se lembra do criador de Mafalda com o amor de um filho. “Tive essa recompensa de estar próximo a um anjo, um gênio que, por uma questão de idade, poderia ser meu pai. Viajei muito com ele, conversamos bastante, nos embebedamos, celebramos muitas noites”, ele conta.

Ícone portenho

Figura que habita a mesma estante do ex-jogador Maradona, da ex-primeira dama e líder política Evita Perón (1919-1952), do cantor Carlos Gardel (1890-1935) e do escritor Jorge Luis Borges (1899-1986) na memória afetiva e cultural da Argentina, Joaquín Salvador Lavado Tejón, mundialmente consagrado como Quino, apelido que recebeu de sua família ainda na infância, nasceu em julho de 1932. Ficou órfão em meados da década seguinte – a mãe faleceu em 1945, e o pai, três anos depois. Nessa época, Quino já vivia em Buenos Aires, cidade que viu sua arte tomar forma e ganhar o mundo. 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Con Quinito, en su casa cuando nos reporteo Rodrigo Fresán para Primer Plano, @pagina12 #Quino

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Em 1954, ele passou a publicar as primeiras tirinhas de humor nos diários de Buenos Aires. Mafalda, sua imensa e imortal criação, apareceu nos jornais pela primeira vez em 29 de setembro de 1964 – completou, portanto, 64 anos na última terça-feira – e ocupou os jornais pela última vez em 1973.

Provocativo e sagaz, Quino também deu vida a outros personagens brilhantes – e anônimos – em 65 anos de carreira. Ao longo de sua vida, o cartunista lançou vários livros, expôs em galerias em todo o mundo e recebeu prêmios, entre eles o II Prêmio Ibero-Americano de Humor Gráfico Quevedo, o Prêmio Príncipe das Astúrias e o Legião da Honra da França.

Universal e contemporâneo

“Para mim, é o maior de todos”, enaltece Duke, chargista de O TEMPO. Ele pondera que a obra de Quino tem tudo que um bom cartum precisa: um traço marcante e habilidoso e um conteúdo humorístico que, num primeiro momento, sempre leva ao riso, mas que inevitavelmente coloca o leitor em um lugar de pensamento crítico e de reflexão, que provocam, muitas vezes, sentimentos como a indignação.

“Todo desenho dele tem isso num nível máximo. Os cartuns dele, para além da Mafalda, são geniais, que é uma palavra pequena para representar o trabalho desse cara, que trata da injustiça social, do poder que oprime… Talvez toda a filosofia humana esteja resumida nos desenhos de Quino”, comenta Duke. 

Quino deixa um trabalho que repercutiu mundo afora e foi traduzido para mais de 30 idiomas, o que dá dimensão de como ele conseguiu ultrapassar barreiras culturais, de tempo ou espaço, e colocar seu pensamento pelos cinco continentes. Seja pela estética, seja pelo conteúdo, Quino, contemporâneo desde sempre, alcançou uma universalidade tão perseguida por artistas de distintas áreas – mas dificilmente alcançada – justamente por apontar temas que têm a ver com a condição humana. 

Agora que o amigo “marchou para outros lados”, Miguel Rep diz que Quino deixa vago um lugar onde o humanismo imperava no humor e entra para a história como um dos maiores autores do século XX, com a mesma importância de Borges. Indo além de sua obra-prima, a pequena e contestadora Mafalda, o argentino ressalta que a potência filosófica, libertária e plástica de Quino, que perdera a visão por completo recentemente, também ficam como a preciosa herança.

Sobre a influência e a importância do cartunista para as artes na Argentina e no mundo, Rep conclui: “Há um antes e um depois de Quino. Ele está em suas páginas. Ali ele desenha com liberdade, ali é um mensageiro único”.