“Memórias Sinceras”, a aparentemente despretensiosa autobiografia de Leilah Assumpção, iniciada há cinco anos, foi finalmente lançada anteontem, pela Sá Editora. Abre com uma carta enviada por Antonio Candido, que foi professor na USP da jovem que se tornaria depois manequim e dramaturga. Ele resume que Leilah “faz o seu modo de ser comunicar-se com naturalidade à experiência do leitor” e a descreve como autora de “qualidades pouco frequentes, como a sinceridade sem exibicionismo”.

Desde “Fala Baixo Senão Eu Grito”, que estreou há 50 anos, com Marília Pêra como Mariazinha, é como a veem. Miroel Silveira, professor e crítico, dizia não saber se ela era “muito ingênua ou superdotada”. “Todo mundo fala que parece que estou conversando, pelo meu jeito de escrever teatro”, diz ela, em entrevista. “Sabe por quê? Porque tive formação de ver teatro e não de ler”.

Seu pai, também professor, foi ator amador no interior de São Paulo – onde ela nasceu há 76 anos, em Botucatu, e passou a adolescência, em São João da Boa Vista. A própria Leilah atuou em teatro infantil, desde logo. Mas o que a marcou foi a capital. “Eu vim e assisti a ‘A Semente’, do Guarnieri. Depois mudei para São Paulo e vi ‘Pequenos Burgueses’ e desde então não perco uma peça, tenho uma formação de ver o Oficina. E da coxia também”.

Foi atriz na primeira montagem de “Vereda da Salvação”, dirigida por Antunes Filho, mas seu vínculo maior é com o teatro de Zé Celso. Foi namorada do diretor, estudou interpretação com Eugênio Kusnet no Oficina, foi amiga da atriz Liana Duval. “A Liana me ensinou os principais palavrões da minha vida. Aprendi primeiro com ela e depois com Plínio Marcos”. E depois usou nas próprias peças.
Ela tira outras conclusões sobre o seu teatro, citadas esparsamente no livro, como quando afirma que a sua geração de dramaturgos deu voz a quem ainda não tinha, no Brasil dos anos 1960.

É a que ficou conhecida como Geração 69, de José Vicente, Consuelo de Castro e outros que passaram a chamar a atenção em torno de 1969, tendo Plínio como precursor. Com peças de poucos personagens, ele deu voz à marginalidade e abriu o caminho. Leilah deu voz às mulheres. “Foi por emoção, primeiro”, diz ela, lembrando de seus primeiros anos na cidade. “Eu era muito sensibilizada com as solteironas do pensionato. Porque não se adaptavam mais ao interior nem a São Paulo”. 

Mariazinha, a personagem, surgiu num conto e depois na primeira peça de Leilah, mas não encenada até 1979, “Vejo um Vulto na Janela, Me Acudam que Eu Sou Donzela”, como Maria Angélica. “Tudo isso serviu como preparação para escrever o ‘Fala Baixo’ em um dia e uma noite”, diz. “Não é que jorrou. Fiz o conto e outra peça antes”.

Mas foi só em 1975, com Irene Ravache, que ela se voltou conscientemente ao tema. “‘Roda Cor de Roda’ foi o rompimento com tudo, o oposto da Mariazinha. Aí escolhi escrever sobre a mulher, porque era o melhor que eu tinha para dar”. 

Autora teatral brasileira mais bem-sucedida, ela escreveria outras peças de grande público nas décadas seguintes, como “Boca Molhada de Paixão Calada” e “Intimidade Indecente”, mas “Fala Baixo” é sempre a mais lembrada. “Acho que às vezes atingimos o inconsciente coletivo”, diz ela. 

Busca por liberdade marcou principal personagem

A peça “Fala Baixo Senão Eu Grito”, que marcou sua estreia no palco em 1969, revelou o que seria a principal marca de sua escrita: personagens femininas densas em busca do autoconhecimento e da liberdade. Crítico teatral do "Jornal da Tarde", Sábato Magaldi registrou: “disposta a colocar em xeque determinadas posturas assumidas no mundo do trabalho e no espaço familiar, a autora voltou-se para os problemas existenciais da mulher imersa numa estrutura política ditatorial”. Surgia uma voz potente no teatro brasileiro. 

Leilah passou a delinear, como poucos, os diversos perfis da mulher moderna. Para isso, contou com exuberante presença cênica de Marília Pêra. “Fala Baixo...” trazia Marília como Mariazinha, a solteirona marcada por frustrações que tem o quarto, certa noite, invadida por um homem armado. 

O fato desencadeia uma transformação na rotina pacata da mulher, que envereda em uma alucinante busca do autoconhecimento e da liberdade. “Marília me disse que via Mariazinha como uma concha, e que ela, Marília, tinha essa concha dentro dela também. E só bem mais tarde é que percebi que a personagem tinha algo de mim, que eu também tinha uma concha escondida lá dentro”, diz ela.

Saiba mais

Com 224 páginas, “Memórias Sinceras” sai pela editora Sá pelo preço de R$ 49,90. O livro traz 15 capítulos, em estilo de crônica, sobre a geração cultural no Brasil entre os anos 1960 e 1990.