Os Beatles criaram uma das obras mais universais da música pop do século XX. Daqui a 100 anos, os versos e as melodias do quarteto continuarão reverberando e influenciando gerações. No Brasil, a máxima também vale e não é lá uma grande novidade ver bandas que misturam as canções de Ringo, Paul, John e George com os mais diversos gêneros. Tem Beatles com tudo: samba, blues, bossa nova, carnaval, choro, jazz, música para crianças e forró. Quando o compositor Rafael Beibi, beatlemaníaco e forrozeiro ardoroso, decidiu, lá em 2013, unir suas duas paixões, ele sabia que esse casamento por si só não traria nada de novo.
A solução foi buscar inspiração nas paisagens e na poesia da literatura de cordel. “Eu não queria juntar por juntar, queria criar um universo para no qual esse som se materializasse. Beatles sempre me levou para esse lugar da fantasia, e a literatura de cordel também. Aí veio a ideia desse personagem, o Seu Quité, para amarrar a história”, ele explica. É essa história, costurada por rimas, acordes e uma narrativa teatral, que o Beatles Cordel conta no álbum homônimo que chega às plataformas digitais nesta sexta-feira (14).
Seu Quité, interpretado por Giovani Bruno, é um poeta matuto que, mexendo em seu radinho de pilha, encontra, como num passe de mágica, uma estação que só toca Beatles. Mesmo sem saber quem ou como eles são, ele se apaixona pela canção daquele grupo, que ganha vida em sua imaginação como Os Brito, formado por João Eleno, Paulo Macarti, Jórgi Réro e, por último, com um nome esquisito, Ringo, o ritmista.
Misturando realidade e fantasia, “Beatles Cordel” fala do encontro inevitável entre Seu Quité e a música. Os versos do cordel, assinados por Rafael Beibi, são deliciosos. As referências a uma viola tocando gentilmente, à Lúcia com diamantes no céu, a carros feitos de papel e a um submarino da cor do sol se misturam com personagens como a Dona Socorro e a Leonor da venda. A capa do disco emula “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band”, mas com a psicodelia sertaneja.
A escolha do repertório, que privilegia as canções mais conhecidas dos Beatles, se deu pela proximidade dos elementos do forró com o cancioneiro dos Fab Four. “‘Day Tripper’ tem o andamento de arrasta-pé. ‘Love Me Do’ ficou no balanço do xote, ‘Come Together’ tem um bumbão, é uma ciranda. ‘Strawberry Fields Forever’ é uma música densa, John Lennon se questiona sobre a posição dele no mundo, se ele é um gênio ou um maluco, e o maracatu casa pra caramba. Em ‘Help’, recorremos a Raul Seixas, que falava que baião é rock”, comenta Beibi, que é vocalista da banda de forró Zaíra.
“All You Need Is Love”, “Get Back” e “Blackbird” completam as oito faixas escolhidas para o álbum, entrelaçado pelas leituras dos cordéis. Aliás, é em “Blackbird”, marcada com o lamento da sanfona, que o grupo paulista promove o encontro entre um tal de Paulinho Macarti e Luiz Gonzaga nos versos de Bruno Lins, um dos convidados do projeto: “Paulo Macarti ouviu com desmedida atenção/ As melodias bonitas que adornavam a canção/ Foi quando ele descobriu e o locutor transmitiu/ Nós tocamos Assum Preto, do nosso rei Gonzagão”.
A banda, formada por Beibi, Rafa Virgulino, Guegué Medeiros, Matheus Tagliatti, Giovani Bruno e o belo-horizontino Alysson Salvador, coloca zabumba, sanfona, viola, violão, percussão, contrabaixo, triângulo, ganzá, reco-reco e vassoura no universo beatle. O grupo chegou a fazer algumas apresentações do álbum em 2019 pelo interior de São Paulo, onde moram a maioria dos integrantes. Aí veio a pandemia e o resto da história todo mundo já sabe.
Gravado nos últimos dias de dezembro, “Beatles Cordel”, que teve de ser adaptado para o disco ganhar dinamismo, já que o show é bem mais longo, vale ser ouvido várias vezes. Para Rafael Beibi, criar releituras para clássicos dos Beatles foi prazeroso e divertido. Segundo o compositor, o trabalho é, sobretudo, “uma grande celebração da cultura nordestina e brasileira”.
O álbum tem o mérito de não apostar em malabarismos: mantém a estrutura original das músicas e não descaracteriza o som dos Beatles ao mesmo tempo em que marca um golaço ao injetar poesia, sotaque e cordel em uma obra que mora pelos quatros cantos do mundo e agora chega também ao sertão brasileiro.
Lançamento
Viabilizado com recursos da Lei Aldir Blanc, “Beatles Cordel” chega nesta sexta-feira às plataformas digitais da banda (no YouTube ao meio-dia), que apresenta, no dia 29, uma tocada ao vivo do álbum com convidados da cena do forró. O disco tem participações de Bruno Lins, Lucy Alves, Sapopemba, Zé Pitoco e Tanaka do Pife.