Habita a noite belo-horizontina uma extensa e eclética categoria de cantores e todo um ecossistema musical que, dispensando quaisquer formalidades, tem por suporte um ou dois microfones conectados a caixas de som e a um televisor exibindo letreiros dinâmicos, que vão se preenchendo à medida que a melodia avança enquanto mostram paisagens com um quê de aleatórias – como o vídeo que registra o pousar delicado de uma borboleta em um jacaré.

 

 

 

Nesses espaços, esqueça quaisquer outros instrumentos, pois tudo se resolve no gogó e, no máximo, na palma da mão. Ali, até a afinação, embora bem-vinda, é dispensável. Estamos falando, é claro, da cena do videokê, que se espalha por toda BH, dos bairros que margeiam a cidade ao centro dela, e que, com diferentes propostas, formam verdadeiras comunidades, rendendo encontros festivos e divertindo espectadores e cantores amadores noite adentro.

É para ter essa experiência que, geralmente duas vezes por semana, nas quartas e sábados, assim que encerra o expediente no salão de beleza em que trabalha, no bairro de Lourdes, a manicure Viviane Gonçalves de Oliveira, 46, segue pela rua São Paulo por sete quarteirões, virando à esquerda na rua dos Goytacazes. O trajeto, cumprido em coisa de 15 minutos, ou metade desse tempo quando opta por ir de táxi, é o que separa Vivi do quase estrelato. Afinal, quando chega ao destino, o Bar do Franz, mais conhecido como Bar do Fernando, é como se um tapete vermelho se estendesse diante dela.

Recebida afetuosamente desde o primeiro momento, ela retribui o carinho, percorrendo as mesas distribuídas na calçada em que estão seus conhecidos para distribuir abraços. Em seguida, entra no estabelecimento, não sem antes esbanjar simpatia ao cumprimentar também os garçons e proprietários.

Já no bar, Vivi escolhe um lugar próximo ao videokê e, enquanto espera a primeira garrafa de cerveja acompanhada de uma garrafinha d’água, passeia os olhos em uma longa lista de músicas disponíveis em um aplicativo. Ela anota os números referentes a quatro dessas composições, entrega a atendente e logo está com o microfone em punho, dando tudo de si ao interpretar todo um sortimento de hits

Em uma noite de quinta-feira, quando cumpriu esse percurso, dessa vez acompanhada da reportagem de O TEMPO, a cantora amadora, que não domina a língua inglesa, começou a apresentação com a internacional “I like Chopin”, do cantor e compositor italiano Gazebo. Em seguida, apostou em “Não deixe o samba morrer”, gravada originalmente por Alcione, de quem ela é fã declarada, que emendou com “Liberar Geral”, sucesso coreografado do grupo Terra Samba. E, para encerrar essa primeira remessa musical, a escolhida foi “Velha Infância”, dos Tribalistas.

Nesse ínterim, à medida que amigos chegavam, outras mesas eram incorporadas à primeira até que ninguém ficasse de fora. Perguntada se as idas ao lugar eram sempre assim, movimentadas e bem acompanhadas, Vivi nem titubeia: “Sim! A gente se tornou uma grande família”. Pudera. Ela mesma contabiliza nada menos que 18 anos frequentando o lugar. “É uma vida inteira de amizade”, constata, citando que sempre gostou de cantar, mas que esse hobby ficou adormecido por um tempo, sendo redescoberto nos bares-videokê de BH. “Quando criança, eu participei de um coral, porém, quando me tornei adulta, fiquei muito sem ter um lugar para essa prática. Até que comecei a trabalhar no salão e uma amiga me chamou para vir aqui. Eu topei, cantei, gostei e nunca mais deixei de comparecer”, rememora.

‘Música é detalhe, estamos aqui pela amizade’

Dividindo a mesa com Viviane Gonçalves, com quem até duetou em algumas canções, o gerente de farmácia Wander Lúcio de Oliveira, 50, dá testemunho ao que diz a amiga. “Acho que o videokê é, acima de tudo, um ambiente de amizade. A gente põe a música como tema principal, mas, no final das contas, é a relação que construímos entre nós que nos une aqui. Tanto que tem algumas pessoas nem cantam, mas gostam de ficar conosco. E, afinal, se não fosse por isso, cada um poderia simplesmente cantar na sua casa”, reflete, fazendo menção à presença de Dilza, uma das incentivadoras do grupo. “Eu não canto, mas frequento aqui há aproximadamente 16 anos para desopilar, rever amigos e ouvir música. É um momento singular para mim”, explica.

Na opinião de Wander, o acolhimento e o senso de pertencimento estão entre os atrativos desses lugares. Ele cita sua própria introdução ao grupo como exemplo dessa receptividade. “Quando eu vim para cá, eu sentei em uma mesa e fiquei quietinho, na minha, porque eu sou meio tímido. E, para minha surpresa, uma pessoa me chamou para sentar com o grupo dela. Como eu tinha visto eles cantando e achei bacana, quis me juntar e deu no que deu”, pontua, lembrando que, no seu caso, a paixão pelo videokê começou há 15 anos.

“Na época, comecei a frequentar um bar perto da minha casa, no bairro Goiânia, depois do Santa Inês (na região Nordeste de BH), que tinha essa opção. Lá era o meu destino principal depois do trabalho. Mas o estabelecimento fechou, então eu vim para o centrão atrás de novos ares”, recorda, argumentando que quem gosta dessa experiência não para de procurá-la. “Isso é um vício”, brinca.

Para ilustrar a constatação, Wander refaz os próprios passos até que passasse a ser parte da comunidade de frequentadores do Bar do Franz. “Aqui no Fernando eu venho há uns 5 anos. Antes, eu frequentava outros bares, como o (restaurante) Beco, que fica em frente à igreja São José, na (rua) Tamoios. Mas, com a pandemia, o videokê de lá deixou de funcionar”, lamenta, situando ainda que existem grupos no WhatsApp dedicados à “videokemania”. “Eu estou em dois”, diz. Um deles é o Karaokê Social Club, que mapeia diversas alternativas de espaços na cidade. “Já fui em alguns no Barro Preto (na região Centro-Sul), no Céu Azul (em Venda Nova)… Até em outras cidades, como em Contagem e em até em São José da Lapa (ambas na Região Metropolitana de BH), eu já cantei”, comenta ele sobre a “miniturnê” de que se orgulha.

GLOSSÁRIO:

Karaokê. Modalidade em que o cantor tem o acompanhamento musical, mas precisa saber o ritmo e a letra da música.
Videokê. Alternativa em que o cantor, além de ter o acompanhamento musical, pode ler a letra da música, que vai aparecendo na tela de forma cadenciada, estrofe por estrofe.