Há duas máximas sobre as boas intenções: uma tomou a forma de ditado popular e afirma que “de boas intenções o inferno está cheio”. Outra, menos conhecida, é um aforismo de Oscar Wilde (1854-1900), que vai pelo mesmo caminho: “As boas intenções foram a ruína do mundo. Os únicos que fizeram alguma coisa no mundo foram aqueles que não tinham intenção alguma”, escreveu o autor irlandês. 

Tudo isso para dizer que o projeto “Acorda Amor”, fruto de um espetáculo organizado pelo Sesc em fevereiro de 2018 e que acaba de ser lançado em CD, acerta em cheio ao debater o buraco no qual a nossa incipiente democracia se enfiou, mas peca, justamente, na abordagem. Trocando em miúdos: a validade e a urgência da temática não eximem de deslizes a forma como esse conteúdo é tratado. Não falta atitude. 

Intérpretes

Dois valores essenciais para as sociedades modernas e democráticas aparecem na seleção do quinteto de intérpretes: diversidade e representatividade, aliadas à qualidade musical, justificam as presenças de Maria Gadú, Liniker, Letrux, Luedji Luna e Xênia França no álbum. O repertório impõe o mesmo respeito, com clássicos de bambambãs da música brasileira, como Roberto Carlos, Belchior, Ivan Lins, Rita Lee, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gonzaguinha, com reverência a Chico Buarque, cuja canção “Acorda Amor” batiza a empreitada. 

Ao se escolherem canções tão marcantes um risco iminente é o da comparação. Para aliviar um pouco essa barra, nomes contemporâneos também comparecem. A ideia inicial era realizar um baile de Carnaval, como revela a apresentadora Roberta Martinelli no texto para o encarte. De modo compreensível, à medida que o tenebroso ano de 2017 avançava, essa intenção foi sendo modificada. O entusiasmo cedeu lugar à luta. 

Repertório

De posse de todo esse aparato, a expectativa derrapa. As cantoras se revezam ao longo das faixas, e o resultado é irregular. Na abertura com “Gente Aberta”, de Roberto e Erasmo, e no fechamento com “Cansaço”, elas se unem em coro. A primeira não chega a empolgar, enquanto a última é responsável por um momento de brilho, amparado nos versos de Douglas Germano, que rebatem com ironia e acidez a crença de que o sacrifício é um mérito: “Tanta solidão/ Tanta servidão/ E a gente cada dia mais feliz/ Tanta ingratidão/ Tanta incompreensão/ E a gente mais perto do que nunca quis”. 

Na voz de Xênia França, “Deixa Eu Dizer” não tem o mesmo impacto da antológica gravação de Cláudia, feita em 1973, e recuperada por Marcelo D2 nos anos 2000. Ao entoar “Assumindo”, de Leci Brandão, o desempenho de Xênia cresce, pela própria natureza da música, bem ajustada a seu canto. 

Outro ingrediente que torna a faixa atrativa é o discurso, que troca o enfrentamento pela narrativa da experiência de duas mulheres que andam na rua de mãos dadas. “Comportamento Geral” se perde em modernidades sonoras que sacrificam a tenacidade da letra. 

Já Letrux brinca como quer com “Saúde”, de Rita Lee, e se dá muito bem. O que não se repete na cada vez mais surrada “Sujeito de Sorte”, de Belchior. Com “Cinco Bombas Atômicas”, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, ela retoma o pique. O discurso de “A Vida em Seus Métodos Diz Calma” (Di Mello), contrasta com a entrega excessiva de Liniker, cujo exagero volta a dar o tom em “Não Adianta”. “Chorando pela Natureza” começa a virar o jogo. 
Luedji Luna canta “Extra” com correção e emociona pra valer em “Obaluayê”, de belo arranjo. Mas “Conflito” soa rala. O canto reto de Maria Gadú em “O Quereres” não acende as nuances da música. “Triste, Louca ou Má” surge monótona. Ao fim, ela se recupera com vigor em “Nuvem Cigana”, de Lô Borges e Ronaldo Bastos.