"Tenho medo, sou uma covarde. Lamento por tudo. Se eu tivesse feito isso há muito tempo, teria poupado muita dor". Estas foram as palavras que constavam no bilhete que estava dentro da bolsa encontrada aos pés do icônico letreiro de Hollywood, em setembro de 1932. O corpo de uma jovem loira foi localizado mais embaixo, ao pé da montanha, com múltiplas fraturas na região da bacia, o que teria sido a causa de sua morte. Como o bilhete estava assinado apenas com as iniciais P.E, foi só após a publicação do caso pela imprensa que o tio da atriz Peg Entwistle foi ao necrotério para reconhecer o corpo e, assim, dar o mistério por encerrado. Mas o caso, claro, entrou para os anais das história da terra do cinema, na Califórnia.
E é ele, de certa forma, que entremeia a narrativa de "Hollywood", uma das novas séries a constar do cardápio da Netflix. A primeira temporada traz sete episódios, de duração entre 40 e 50 minutos, cada. A empreitada leva a assinatura de Ryan Murphy e Ian Brennan ("Glee"). A abertura sintetiza de forma precisa o que se pretende mostrar ali, na série, com os personagens aspirantes ao estrelato tentando escalar as letras colossais que, na vida real, estão no alto do Mount Lee. Por vezes, perdendo algo (simbolicamente, um sapato), por vezes dando pulos ousados, em outras, estendendo a mão para o colega. Ao final da apresentação, estão todos lá, no alto, cabelos ao vento, a olhar para um horizonte de cores artificialmente matizadas.
Citada no início da matéria, Peg, vale dizer, pulou para a morte após escalar o "H" do letreiro, que na época, na verdade, mostrava a palavra Hollywoodland, . Tinha apenas 24 anos, e o que ficou para a história é que a moça nascida no País de Gales e de incríveis olhos azuis (como a descrevem) teria sucumbido ao desgosto de não ver sua carreira decolar, embora tivesse participado de uma boa dezena de peças. E se a série não gira propriamente em torno da história dela, Peg é uma espécie de fantasma que ronda todos os personagens que para lá convergem em busca da glória. Uma glória que, como o espectador vai poder deduzir, requer muitas, muitas concessões - inclusive no que tange a fazer sexo com poderosos no afã de abrir portas.
No curso de "Hollywood", personagens fictícios se mesclam aos que representam nomes emblemáticos da história do cinema, como Vivien Leigh, a eterna Scarlett O'Hara de "E o Vento Levou" (1939), aqui melancolicamente apresentada como atamente instável - consta que, na vida real, sofria de um transtorno bipolar. Mas são mesmo os fictícios aspirantes a famosos que ocupam os papéis centrais. Entre eles está Archie Coleman (Jeremy Pope), que divide seu tempo entre ser garoto de programa em um posto de combustível (lugar que realmente existiu) e escrever roteiros.
Na história, ele o autor do roteiro do fictício filme "Peg", que contaria justamente a história da jovem suicida, e que entra como fio condutor da série. Negro, Archie tomou a precaução de enviar o seu texto por correio para a apreciação dos estúdios, cônscio do preconceito racial ainda muito marcante à época - aos negros, em Hollywood, eram delegados apenas papéis secundários, como os de serviçais. Em um dado momento da série, aliás, um dos personagens argumenta que nenhum grande estúdio, até ali, havia tido a ousadia de produzir um filme baseado em um roteiro escrito por um negro. Ocorre que o roteiro de Archie é muito bom. E, quando se descobre que ele é negro, o scrpit já está aprovado - sem ressalvas.
Logo, o diretor escalado - Raymond Aisley (Darren Criss, o Andrew Cunanan de "O Assassinato de Gianni Versace: American Crime Story") - inicia os testes para elenco. Entre os candidatos, estão Claire Wood (a australiana Samara Weaving), filha do dono do estúdio (lógico que ninguém sabe desse pequeno detalhe), e Jack Castello (David Corenswet), companheiro de Archie no posto de combustível - como a mulher dele está à espera de gêmeos, ele é obrigado a se prostituir para manter a casa, se relacionando principalmente com mulheres mais velhas, em especial, Avis Amberg (Patti Ann LuPone), mãe de Claire.
Por uma série de acontecimentos que se sucedem à revelia de vontades, Avis é levada a assumir o estúdio e, não sem alguma relutância, acaba aceitando transformar radicalmente o roteiro de "Peg". A ideia, agora, é ceder vez ao filme "Meg", dando chance, assim, à atriz que se mostrou mais talentosa nos testes, Camille Washington (Laura Harrier) - como Archie, negra. Em síntese, a mesma história, mas protagonizada não mais por uma branca, como foi Peg na vida real. Logo, começam as retaliações, vindas principalmente do sul, como o boicote aos filmes do estúdio.
É a partir daí que a série adquire contornos mais interessantes, embora desde o início seja colocado em relevo o excesso de preconceito vigente naquele recorte temporal de Hollywood, direcionado principalmente aos que não correspondem ao dito padrão da "terra dos sonhos", o que inclui não só os "colours", mas também asiáticos, caso do personagem Raymond Aisley. Como o personagem, o ator Darren Criss tem ascendência filipina, o que fenotipicamente não transparece. Quando ele próprio cita isso na série, causa estranheza, mas logo o preconceito advém. Não só. "Hollywood" também destaca a impossibilidade de um ator se assumir homossexual à época (na verdade, em se tratando de Hollywood, até hoje), o que é mostrado sobremaneira com o personagem de Rock Hudson, mais um inspirado em uma figura da vida real.
Homossexual enrustido, Hudson virou um astro de cinema a partir dos anos 50, sendo protagonista de dezenas de filmes que levavam o público feminino ao delírio, e dividindo os méritos com atrizes como Doris Day, Julie Andrews ou Elizabeth Taylor. Morreu em decorrência da Aids, em 1985, sendo uma das primeiras celebridades a sucumbir ao que, acredite, chegou a ser chamado de "peste gay". Aqui, em início de carreira, meio apatetado e sem indício algum de talento, Hudson é interpetado pelo talentoso Jake Picking.
Não bastasse, a série lança seus holofotes sobre um mundo nada glamuroso, que incluia orgias travestidas de festas, realizadas nas mansões suntuosos dos poderosos com a presença de drogas e gigolôs a mancheias (só possível num mundo pré-smartphones). E os míticos testes de sofá, aos quais, segundo a narrativa, os aspirantes eram praticamente obrigados a assentir, se quisessem ter alguma chance. Achou pouco? Bem, ainda tem a rede de intrigas e chantagens que permeia um mundo edulcorado somente na imaginação de quem está vendo de fora.
É provável que a forma adotada pela série para contar a narrativa não agrade a todos. A direção adota um dinamismo que quase a conecta à linguagem dos musicais, com a trilha sonora e a edição colocadas de certa forma muito frenética. Mas é uma série para ir sendo cooptado aos poucos, até a rendição total.
Ao fim, alivia pensar o quanto o mundo mudou. O cinema também. Muitas máscaras caíram e alguns tabus rolaram por terra. Mas, claro, muitas Pegs ainda vão conviver com a frustração de não se tornarem estrelas. O mundo não é uma fita de cinema, como se dizia antigamente. E nem Hollywood é mais a terra dos finais felizes.