A paulista Gabriele Leite, 24, começou a fazer aulas de violão aos 7 anos, incentivada pela família. Dos 12 aos 18, continuou estudando violão clássico em um conservatório na cidade de Tatuí, a 130 km de São Paulo. Em 2016, ingressou na graduação em música no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Na semana passada, ela concluiu, como bolsista premiada pela excelência acadêmica, o mestrado em violão clássico na renomada Manhattan School of Music, em Nova York, onde passou os dois últimos anos e para onde voltará em dois meses para iniciar o doutorado na mesma instituição.
Além da dedicação e da paixão pelo violão, algo – alguém, melhor dizendo – a acompanha durante toda essa trajetória. Desde a infância, Gabriele ouve falar e estuda a obra de Guinga, um dos grandes violonistas da história da música popular brasileira. “As pessoas, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, sempre falaram muito sobre as composições do Guinga. Desde que comecei, ouço falar dele”, comenta a musicista.
Quase meio século de vida separam a paulista e o carioca, que completa 72 anos em 10 de junho. Gabriele e Guinga não se conhecem. Ainda. Nesta quinta-feira (2), eles vão pisar no mesmo palco pela primeira vez. “É uma injeção de juventude na minha alma, a verdade é essa. Estar no mesmo festival com a Gabriele, uma garota de 24 anos, é o milagre da música. A música não obedece à cronologia. A vida é um milagre, e a arte tenta reproduzir esse milagre. A arte não é prisioneira do corpo, do tempo”, filosofa Guinga.
Ele e Gabriele Leite são os convidados do primeiro dia do “Encontro do Violão Brasileiro”, evento que acontece no Centro Cultural Banco do Brasil Belo Horizonte (CCBB-BH) e, até domingo (veja ao final da matéria), reúne instrumentistas como Celso Moreira, Carlos Walter, Lucas Telles, Zé Paulo Becker e o Duo Siqueira Lima, formado pela uruguaia Cecilia Siqueira e pelo mineiro Fernando de Lima.
Quem idealizou e colocou o projeto no papel foi outro bamba do violão, o mineiro Thiago Delegado, 39. Pesquisador, compositor e arranjador, Delegado, há um bom tempo, planejava fazer do instrumento o protagonista de um encontro nacional que mesclasse músicos de diferentes gerações e regiões do país.
Construir uma carreira (em 2010, ele lançou “Serra do Curral”, o primeiro de seus cinco discos, sendo “Detalhes Guardados”, de 2021, o mais recente) respeitada e se tornar referência no violão de sete cordas foi uma meta alcançada pelo mineiro, que agora pode, enfim, abrir o palco para seus convidados após o evento ser adiado por conta da pandemia.
O “Encontro do Violão Brasileiro”, em boa medida, também marcou o reencontro do músico com o violão que ele abraçou na juventude em Caratinga. “Voltei a estudar, fazer exercícios e escalas, relembrar o repertório que eu tocava há 20 anos, do violão brasileiro de Dilermando Reis, Garoto, Guinga, que temos a honra de trazer para o festival”, comenta Thiago Delegado. Além de Belo Horizonte, o evento vai passar pelos CCBBs de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Ao todo, 25 violonistas participam dessa primeira edição.
Com o auxílio de Renata Chamilet, que assina a coordenação geral e a curadoria do encontro, Thiago Delegado privilegiou o intercâmbio entre músicos de diversas praças e histórias: “Temos desde grandes figurões até uma geração intermediária, que são meus contemporâneos, até novos talentos. Gente de BH vai tocar em São Paulo, do Rio vai se apresentar em Brasília, e por aí vai”. Fazer um recorte de gênero e não deixar as mulheres de fora também foi um dos nortes da programação.
“A Renata bateu muito nessa tecla. Eu não conhecia o trabalho da Gabriele, por exemplo, e ela é uma violonista muito talentosa. A Cecilia Siqueira, filha do Fernando, faz parte de um dos maiores duos de violão do mundo, é lindo de ver. Incluir o universo das mulheres sempre foi nossa preocupação”, diz Thiago Delegado, que vai dividir o palco com todas as atrações.
A única preocupação de Guinga na véspera do festival era se recuperar de um início de gripe que o acompanhava há alguns dias. Fora isso, o carioca do bairro de Madureira não vê a hora de se apresentar novamente em Belo Horizonte. Parceiro de Clara Nunes, Alaíde Costa, Cartola, Elis Regina, Aldir Blanc e Chico Buarque, Guinga se sente feliz e honrado toda vez que é lembrado para participar de eventos desse naipe.
“Sempre pensei que o reconhecimento da minha obra seria póstumo, mas não está sendo, graças a Deus. Não sou um compositor que fez um sucesso estrondoso, mas sou bem-sucedido em termos artísticos”, pondera o compositor, que completa: “Nunca imaginei que eu conquistaria o que conquistei com a música. Não sou rico, não tenho bens, mas vivo com dignidade, conheci o mundo, e há quem ame e acompanhe minha obra. Isso já é um milagre, o milagre da arte”.
Gabriele Leite chegou recentemente ao Brasil. O convite para participar do “Encontro do Violão Brasileiro” aconteceu há mais tempo, quando ela ainda enfrentava a reta final de seu mestrado nos Estados Unidos. O contato foi feito pelo Instagram. Entre uma data e outra, Gabriele conseguiu conciliar sua breve temporada por aqui com a realização do festival.
O evento, ela diz, é importante por ressaltar e enaltecer a tradição do violão brasileiro. “Tradição que é de uma finesse enorme, você não tem em nenhum outro país essa relação com o violão que há aqui. É uma raiz muito forte. Esse projeto é só flores”, celebra a violonista paulista.
“Sabe quando você vai ao parque de diversões e tem um monte de brinquedo legal? É isso que eu sinto quando olho para a programação, que é diversa e deixa que cada um leve sua história para o instrumento”, finaliza a musicista.
Programe-se
O “Encontro do Violão Brasileiro” acontece de quinta a domingo, sempre às 20h, no teatro I do CCBB-BH (praça da Liberdade, 450, Funcionários). Os ingressos estão disponíveis na plataforma Eventim a R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada). Idealizador do festival, Thiago Delegado recebe no palco as seguintes atrações: Guinga e Gabriele Leite (quinta), Celso Moreira, Carlos Walter e Lucas Telles na chamada Noite Mineira (sexta), Zé Paulo Becker (sábado) e Duo Siqueira Lima (domingo). No sábado, às 14h, haverá uma masterclass ministrada pelo próprio Delegado.