Artes Cênicas/Cinema

Espetáculo "Banho de Sol" ganha nova apresentação

Depois de arrebatar o público no CCBB BH, em duas temporadas, peça da Cia. Zula chega ao Centro Cultural do Minas Tênis Clube e, em setembro, vai para a Funarte

Qui, 22/08/19 - 03h00
Da esquerda para a direita, Kelly Crifer, Gláucia Vandeveld, Talita Braga e Mariana Maioline, do elenco da peça | Foto: Alexandre Mota

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O  filme “No Coração do Mundo”, produção mineira em cartaz em BH, que a atriz Kelly Crifer, 37, percebeu o quanto a solidariedade entre as personagens femininas se faz presente em vários momentos da história. Sem titubear, Kelly – que interpreta um dos papéis-chave da trama, a trocadora de ônibus Ana – enumera várias cenas, sob a anuência da colega Gláucia Vandeveld, 59, que, por sua vez, dá vida a Dona Fia no longa. “Uma das críticas do filme que li pontuava o quanto era impressionante a inércia dos homens, enquanto as mulheres estavam sempre em movimento, fazendo coisas, tentando ir para a frente”, arremata Gláucia.

Seria inevitável que apontamentos sobre o mais recente título da produtora Filmes de Plástico emergissem nessa conversa das duas, também professoras de artes cênicas, com o Magazine. Mas, na verdade, o que motivou inicialmente o encontro foi a mais nova apresentação do espetáculo “Banho de Sol”, que também soma os talentos das duas. Agendada para esta sexta, no palco do Teatro do Centro Cultural Minas Tênis Clube, a produção da Zula Cia. de Teatro traz, ainda, Talita Braga (uma das fundadoras do grupo), 38, e Mariana Maioline, 34.

Em cena, tal como o viés apontado por Kelly na tela, a sororidade, a potência do encontro. A troca de afetos. O incentivo a continuar, a escuta, o olhar, o dar-se as mãos. E se a produção audiovisual trabalha sobre o veio da ficção, a teatral encontra calço no cotidiano de centenas de mulheres que estão hoje sob a tutela do Estado, no sistema prisional brasileiro. Mulheres que, lembra Kelly, estão ali “reduzidas a corpos em situação de cárcere, ao crime que cometeram”. Mesmo porque, lá, completa Gláucia, “a subjetividade é apagada”. “Quanto mais a pessoa se transformar em uma massa amorfa, melhor”. 

Num recorte mais específico, as integrantes da Zula trabalharam com mulheres que hoje estão detidas por conta de crimes de grande repercussão (que muitas vezes não são aceitos pelas colegas de outras alas) e por medidas preventivas ou, num segundo momento, as com diploma de curso superior. O nome da penitenciária, elas se reservam o direito de não revelar.

As vivências, que ocorreram por um ano, às terças-feiras, traziam à tona a questão: pode a arte possibilitar momentos de liberdade em situação de cárcere? E, pouco a pouco, vieram reverberações, e em via dupla. “Como quando você joga uma pedrinha na água”, compara Kelly. Talita prossegue: “A gente se afetou, elas foram afetadas, o sistema se afetou, se modificou, mas não só. A cada dia que a gente saía de lá e compartilhava as vivências com outras pessoas, de fora, percebia o quanto isso também as afetava – e fomos percebendo a força, a potência da arte”.

A atriz arremata: “Daí veio a pergunta: por que não dividir, com a sociedade em geral, essa transformação tão gigantesca que a gente viveu? Em um momento no qual a arte é tão demonizada, atacada, por que não usar a potência do teatro para quebrar tabus, preconceitos, para humanizar?”. 

E embora sejam mulheres falando de uma experiência com mulheres, Mariana Maioline salienta que seria limitador referir-se ao espetáculo como “feminino”, mas sim como uma montagem que fala de mulheres. E é nessa toada que acaba atingindo também os homens. 

Trajetória. “Banho de Sol” estreou em março, na sala multiuso do CCBB-BH, então com 90 lugares (a capacidade do espaço é variável). Em função da demanda de público, iniciou outra temporada, mas na sala 1, com capacidade maior (264). Agora, chega a um teatro com mais de 600 assentos. Detalhe: na quarta-feira, dia do encontro com a reportagem, as meninas se alegravam com a notícia de que mais de 400 ingressos já tinham sido vendidos, o que sinaliza um teatro lotado amanhã. 

Mais do que isso, o que tem motivado as atrizes é o fato de, com as apresentações, estarem alcançando mais pessoas por meio uma iniciativa cujo embrião foi o projeto de arte-educação “A arte como possibilidade de liberdade”, que começou lá atrás e que hoje atinge públicos que elas sequer imaginavam: profissionais ligados à área dos direitos humanos, advogados, agentes penitenciários e médicos, para citar alguns. Gente que também faz questão de participar das rodas de discussão inerentes a cada temporada ou mesmo realizadas a convite. Não bastasse, vieram chamamentos de administrações prisionais e escolas de formação de juízes, interessadas no tema.

“Nas primeiras apresentações, era o público de teatro indo nos assistir. Mas, a um certo ponto, percebemos que não conhecíamos mais as pessoas da plateia”, brinca Gláucia. Mulheres egressas do sistema penitenciário também são presenças frequentes, enquanto as presas “em descida” (que conquistam o direito a uma saída de sete dias) entram em contato com elas par alamentar o fato de, por força das regras, não poderem sair à noite, o que as impede, por ora, de assistir à montagem.

Se depender do interesse das plateias, uma hora conseguirão ir. Além dessa apresentação pontual, “Banho de Sol” terá curta temporada na Funarte MG, no mês que vem – precisamente, nos dias 20, 21 e 22. Já para o início de 2020, que vem, a peça tem participação confirmada na Campanha de Popularização do Teatro e da Dança. 

Saiba mais sobre as quatro atrizes


Mariana Maioline, 34, é belo-horizontina. Se considera uma artista independente, tendo já trabalhado com outros grupos, principalmente, dirigindo. Também fez produção cultural por muitos anos, trabalhando, em particular, a cultura afro-mineira. Hoje, é também assessora parlamentar da Gabinetona.
Kelly Crifer. Também belo-horizontina, 37 anos, ministra cursos livres de teatro no Galpão Cine Horto. Possui uma cena, "Ensaio para a Senhora Azul", "que vira e mexe estou fazendo". Vai participar da mostra "Diversa" do festival "Levante", que pela primeira vez acontecerá aqui, na capital mineira. "Além disso, estou em cartaz com 'No Coração do Mundo' e gravando uma série do canal Brasil, com uma equipe de São Paulo, a  'Hit Parade', com direção do Marcelo Caetano". "E também tive uma história importante com o grupo de teatro Invertido, onde fiquei oito anos", acrescenta.
Talita Braga. Aos 38 anos, é de Divinópolis, mas mora aqui desde os sete. "Sou professora de teatro, dou aulas para alunas acima de 50 anos na Estácio de Sá. Sou sócia-funddora da Zula, eu e a Andrea Quaresma - a companhia foi criada em 2010. Além da peça, estou com o curta 'Aurora' que está circulando, e também vou fazer uma participação em 'Hit Parade'"
Gláucia  Vandeveld. Antes de tudo, uma curiosidade: o sobrenome dela é de origem belga. Tem 59 anos, "quase 60", brinca. Nasceu no interior de SP, mas está em BH há 30 anos. "Por isso, me considero uma legítima mineira". É professora no CIne Horto há cerca de 20 anos. Trabalhou com o Espanca! por dez anos, além de ter atuado no coletivo Paisagens Poéticas, tendo sido inclusive dirigiad por Mariana Maioline. Além de "Banho de Sol", participou de um curta-metragem,  que ainda vai estrear, "Angela" "E que fiz com a Teuda Bara, a Teudinha. Ah, e também estou na série do Marcelo Caetano".

Porque o nome Zula
Talita Braga, uma das fundadoras, lembra que o primeiro trabalho da companhia foi a cena curta "As Rosas do Jardim de Zula", "que conta a história da minha mãe que abandonou a familia e, por dois anos,  viveu na rua, até encontrar o marido dela, um caminhoneiro".  Fui pesquisar sobre a minha avó, da qual nada sabia, pois quando morreu, minha mãe tinha um ano e pouco. Daí, me chegou o vestido de casamento dela e muitas outras informações. A Andrea, outra fundadora, falou: 'Zula é um nome muito forte, vamos colocar como o da companhia?"

No elenco de "No Coração do Mundo"
Kelly Crifer  conta que os integrantes da produtora Filmes de Plástico estavam fazendo um TCC e foram assistir a uma peça na qual ela compunha o elenco, "Proibido Retornar" (2009). "Daí, me chamaram para o curta 'Contagem', que foi muito impactante. E desde que a gente gravou, existia o desejo de ampliar (a parceria). 'No Coração do Mundo', pois, é uma ampliação de 'Contagem', que foi o meu primeiro contato com o cinema. Veja, eu sou muito visceral no teatro, e, no set, eu caia, aí eles se assustavam e me perguntavam: 'Kelly, mas você não está machucando?'. E eu: 'Não, tudo bem (risos)".

Para ela, "No Coração do Mundo" foi momento de ampliar a personagem. "A Ana, ela é uma trabalhadora de emprego formal. Não é o que gostaria de estar fazendo, de certa forma, se sente um pouco encarcerada, inclusive porque ainda tem o pai, que é doente, dependente dela, que a força a ficar ali. Mas a Ana tem grandes desejos de mudança, não quer ficar confinada. Ela estuda inglês, faz auto-escola, quer mudar, mas não vê muita possibilidades".

Kelly entende que o filme bate muito na estrutura desigual do país. "Fala das pessoas que estão confinadas, mas, ao mesmo tempo, retrata a força grande da mulher, a esperança, as tentativas, o querer se movimentar. Foi um encontro muito importante e lá, em Contagem, fiz laboratório, vivendo lá, fazendo o percurso do ônibus... E lidando com muita gente que vive em situações difíceis, mas que, ao mesmo tempo, se reúne na praça, quer ser feliz. O filme já começa com a Ana fazendo uma homenagem ao namorado...", exemplifica.
Sobre o fato de contracenar com Eid Ribeiro, ela lembra que os dois firmaram a primeira parceria em 2010, no Circo de Todo mundo. "A gente viajou muito. Eu fazia bacharelado em formação teatral, ele me ajudou muito nessa trajetória, me deu livros. Em 2011, me convidou para, junto a Rodolfo Vaz, fazer 'Antes do Silêncio', viajamos de 2011 a 2014. É um mestre para mim, e no 'Coração', vive meu pai".

Detalhe: ela também já havia atuado com Grace Passô, atriz principal do filme "No Coração do Mundo", na montagem de "Os Ancestrais". "A gente viveu o processo da montagem por um ano, e estar com ela de novo, agora, foi mais um presente da vida. Aliás, acho forte ter, no elenco do filme, tantas atrizes de teatro, pois traz uma responsabildade, uma visceralidade, ao set".

Gláucia, por sua vez, já havia feito o curta "Antes que o Verão Acabe", de Marilia Nogueira. Depois, certa vez, o Affonso Uchoa e o João Dumans foram me assistir e me chamaram para 'Arábia', que foi meu primeiro longa, e que teve uma repercussão bem bonita, ganhou prêmios. O Thiago Macedo, produtor do 'Arábia, me indicou, para 'No Coração do Mundo', quando os meninos pensavam em quem seria a mãe do Leo Pyrata. E foi aí que conheci o Gabriel Martins e o Maurilio Martins. Claro, eu sabia do trabalho deles, mas não os conhecia, e aí a gente começou a conversar e veio a criação da Dona Fia, mãe do Marcos (Pyrata), uma mulher batalhadora, arrimo de família. Aquela como tantas, cujo marido já se escafedeu há muito tempo e que segura a onda dos filhos. Ela criou os meninos e se sente aflita com a passividade do filho, quer que ele se movimente, que arrume um trabalho - o que é o desejao de toda mãe. Que tenha algo fixo, isso é importante para ela. Quer que ele contribua em casa, essa é a questão deles, o confitlo. Já com a filha, tem uma coisa mais de mulher para mulher, porque ela sim, trabalha, contribui. Ali há muito o lugar feminino, do tipo ela falar com o filho: 'Deixa ela em paz, ela tem a vida dela, não vem você com o seu machismo - claro, a fala não é literalmente assim, no filme. Mas é essa relação de conflito, a mulher que é arrimo e o filho que quer colocar ordem na coisa, mas que não contribui com nada. E ela não se deixa levar, fica ali, na porteira, segurando a onda".

“No Coração do Mundo”. O filme, que traz Gláucia e Kelly no elenco, segue em cartaz na cidade

 “Banho de Sol”. Teatro do Centro Cultural MTC (rua da Bahia, 2.244). Única apresentação na sexta (23), às 20h. R$ 30 (valor da inteira)

 

 

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