Música

Faixa a faixa: lis lotus fala sobre seu disco de estreia, ‘Mar Interior’

Produtor, músico e engenheiro de áudio Lício Daf assume codinome artístico e mergulha em um projeto realizado em parceria com cerca de 50 nomes da cena de BH

Por Bruno Mateus | @eubrunomateus
Publicado em 20 de março de 2023 | 12:20
 
 
lis lotus, codinome artístico do músico, engenheiro de áudio e produtor musical Lício Daf, faz sua estreia em disco com 'Mar Interior' Foto: Antônio Andrade/Divulgação

A caminhada de lis lotus, codinome artístico de Lício Daf, na música não vem de hoje. Como jornalista, cobriu os festivais Lollapalooza, Sonar e Primavera Sound, e foi programador musical das madrugadas na extinta rádio OiFM. Na Irlanda, o mineiro do Vale do Rio Doce cursou 'Audio Engineering and Music Technology' no Windmill Lane Recording Studios, mais conhecido como estúdio do U2. Em 2017, inaugurou o estúdio Toca do Bituca, fechado em decorrência dos tempos pandêmicos.

Foi também durante a pandemia, mais precisamente entre 2020 e 2022, que o músico, produtor e engenheiro de áudio decidiu descortinar seu lado compositor, intérprete, cantor e instrumentista. O resultado desse mergulho é o recém-lançado “Mar Interior” (independente), álbum de estreia de lis lotus, que o ouvinte encontra no YouTube e no Bandcamp

São 11 faixas feitas a várias mãos – na versão para as plataformas digitais, o artista compilou oito delas; “Num Pequeno Apartamento”, “Em Frente ao Cais” e “Última Valsa” estarão disponíveis somente em vinil. Todas as músicas ganharam um vídeo teaser feito pela documentarista Julia Baumfeld. O material está no canal de lis lotus no YouTube e no faixa a faixa desta matéria.

Para o projeto, pensado desde sempre como algo colaborativo e coletivo, lis adotou a estratégia do “with a little help from my friends”. São cerca de 50 artistas e técnicos de Belo Horizonte envolvidos no trabalho. “Mar Interior” tem a assinatura de Rick Cheib, do clássico estúdio Bemol, Leonardo Marques, do Ilha do Corvo, além de Rafael Dutra, Kiko Klaus, Marcelinho Guerra, Lucas Mortimer e Flora Guerra.

Cada uma das 11 faixas do álbum tem uma cantora da cena de BH nos vocais. Estamos falando de Chris Tigra, da banda Teach Me Tiger, Elisa de Sena, do Coletivo Negras Autoras, Julia Tizumba, Julia Ribas, Ana Assis, da banda Loquàz, Sara Não Tem Nome, a multiartista Brisa Marques e Jennifer Souza, da banda Moons, entre outras participações.

A diversidade também marcou a escolha dos instrumentistas. André Limma (Gal Costa, Arnaldo Antunes), a pianista clássica Luiza Rozza, Felipe D’Angelo (banda Moons), Nat Mitre, Matheus Fleming (banda Young Lights), Joana Queiroz, Fabio Ogata (Filarmônica de Minas Gerais), Gabriela Viegas, Daniel Nunes (banda Constantina), Leonardo Brasilino, Lucas Completo (banda Iconili) e Barulhista são alguns dos destaques do disco, cuja pós-produção foi capitaneada por Ricardo Garcia, parceiro de Gilberto Gil, Milton Nascimento, Maria Bethânia, Cássia Eller e outros nomes da música popular brasileira.

“Mar Interior” traz um gosto de pandemia e toda a ambiguidade característica do período de isolamento, vivido entre sentimentos paradoxais: medo e esperança, morte e vida sem disfarces diante de nossos olhos. As músicas criam uma atmosfera sonora que guarda tanto uma maliciosa e envolvente melancolia quanto certa fantasia de um sonho bom.

“Dias Frios” começa com o dedilhado do violão de lis lotus. “No espelho lateral/ O mundo já não parece real/ Conviver mergulho num inverno/ Afogando metro a metro/ Vago pelos cantos isolado/ Céu de horizonte tão nublado/ Onde está você?”, cantam Juliana Shiutz e Julia Tizumba.

“Mar Interior”, a faixa-título, é a síntese do álbum. “É o ápice do disco e a multiartista Brisa Marques recita uma poesia simples, mas que reflete toda a ideia por trás desse trabalho. A humanidade só deixará de sofrer quando compreender que faz parte de um todo e se reconectar”, diz lis lotus.

O poema em questão,  de autoria de lis, diz assim: “A brisa bateu e eu da sombra na areia caminhei para o mar. Entrei com vontade. Quando já não dava mais pé, respirei profundamente e mergulhei, mergulhei, mergulhei, mergulhei humanamente e por um instante consegui não pensar em nada, pois era eu e o mar, o sal e o sol. Eu sorria enquanto o mar me abraçava”.

Faixa a faixa, por lis lotus

“Se o Mar Chamar”: abre a porta fechada da capa do disco e convida a um mergulho profundo. Sua guitarra ambiente soa como o som de uma baleia azul. É o início da jornada, o chamado. A voz sussurrada de Chris Tigra vem com o vento dizendo: “e se o mar me chamar”.

“A Mulher do Vale da Lua”: tem o instrumental mais simples do álbum e seu arranjo começa com uma bateria sampleada do VHOOR. O destaque da canção está nas vozes de fundo, que criam a atmosfera e pontuam a letra que fala da relação feminina com a natureza. Um easter egg é o “Vai Vai” fazendo referência a “Canto de Ossanha”, de Baden Powel e Vinícius de Moraes.

“Dias Frios”: tem o tom mais melancólico, representa o período de pandemia e isolamento. Em nossa caminhada, podemos dizer que fui a recusa ao chamado, a vontade de desistir. A letra diz “conviver mergulhado no inverno, afogando metro a metro”. Essa é a única canção do disco onde se escuta um violão.

“Suçuarana”: é o arquétipo da mentora. Ela traz a força e a sabedoria da natureza e nos reconecta com a mãe terra e nossa ancestralidade. A canção tem um cunho político forte. Também coloca o feminino no seu lugar de destaque. Uma curiosidade foi começar as gravações como um mashup com “Talk Show Host” do Radiohead. A ideia inicial não vingou, não casou com a visão que eu tinha para o disco. Decidi então desconstruir o mashup, mas o piano elétrico ainda traz uma vaga lembrança.

“Foguetinho Pra Marte”: participam da canção os duos de música eletrônica Loquaz e o Teach Me Tiger. Aqui atravessamos o limiar entre os mundos conhecido e desconhecido. Sentimos o gosto do mistério, na tentativa de desatar os nós e mergulhar no tempo. Temos a bateria mais crua do disco, praticamente sem efeito algum, em contraponto à densas camadas de guitarras atmosféricas.

“Vento a Favor”: foi a primeira música gravada. Convidei Sara Não Tem Nome e D’Angelo, da banda MOONS, e fomos para o estúdio Ilha do Corvo. A música fala sobre atravessar a tempestade, os testes e provações que a vida nos proporciona. Ela tem um piano lindo que a mixagem por pouco não escondeu debaixo dos sintetizadores.

“Mar Interior”: é o ápice do disco e a multiartista Brisa Marques recita uma poesia simples, mas que reflete toda a ideia por trás desse trabalho. A humanidade só deixará de sofrer quando compreender que faz parte de um todo e se reconectar. Chamo atenção para a trombeta tocada de trás para frente, como as falas na “sala de espera” de Twin Peaks, de David Lynch. Aqui, entramos na caverna escura, no oceano profundo.

“Dedicado a Ela”: gravamos para homenagear Arthur Verocai. Ela representa o caminho de volta pra casa. Sampleamos Portishead e alguns artistas locais. Jennifer Souza assume os vocais e dialoga em uma dança sublime com o clarinete de Joana Queiroz. Quem se transformou nessa viagem, vai sentir que sua velha casa já não lhe serve mais. Essa pessoa honra seu passado, mas logo vai buscar novos ares.