Em cena, uma atriz enclausurada em seu camarim, a conversar apenas com um cisne. Aparentemente, a personagem vivida por Fabiana Gugli, uma atriz, está em frente a um espelho, a se maquiar. Enquanto espera a terceira campainha para adentrar o palco, conversa com um cisne - sim, Marcos Azevedo dá vida ao interlocutor usando, na verdade, apenas o seu braço, revestido de um adereço branco com a forma que remete ao animal. Mas, na verdade, quem está defronte a ela é o público.
Passados 15 anos de sua estreia oficial, no palco do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, o espetáculo "Terra em Trânsito", de Gerald Thomas, 66, ganha, agora, sua versão 2021 - a boa notícia é que a estreia, que acontece nesta sexta, às 20h, pelo YouTube, terá acesso gratuito. Para aqueles que não puderem assistir, haverá outras sessões onlines, nos dias 11, 17, 18, 24 e 25 deste mês, sábados e domingos, sempre no mesmo horário. A partir de 1º de maio, a peça ficará disponível por 24h, todos os dias, até o dia 31 daquele mês - sempre com o acesso franqueado.
Sim, você se lembra. Ano passado, mais precisamente em julho, a peça foi exibida também online dentro do projeto Teatro #EmCasaComSesc. Como na montagem original, a atriz deve entrar em cena para cantar "Liebestod", sua ária em Tristão a Isolda. A nova linguagem mescla teatro e cinema, formato que, embora neste momento esteja mais atrelado às consequências do advento da pandemia do novo coronavírus, não é propriamente uma novidade na trajetória do autor e diretor, já há um bom tempo radicado em Nova York. "Na verdade, todas as minhas peças sempre foram filmadas. Desde, sei lá, 'Electra com Creta' (1986, já com a Companhia Ópera Seca). Sempre entrei no palco com a minha câmera, para ter várias versões, ângulos, e cortar depois", conta ele, em entrevista por telefone ao Magazine, da big apple.
"Quanto a essa peça, como entendo que se presta a esse momento, solitário, aprisionado, achei oportuno fazer de novo, e dessa forma mais cinemática - e assim está". Thomaz conta que o texto não precisou sofrer grandes alterações - mesmo porque, se mudaram os personagens, não mudaram as questões. "Essas não mudam em 15 anos porque, na verdade, não mudam nem em 200, como não mudaram da Idade Média para cá, e nem de AC. Se você voltar cem anos atrás e falar de uma pandemia, de uma guerra mundial, estaria sendo ainda moderno. Porque as grandes questões da humanidade são as mesmas, os sete pecados capitais. Nada mudou", enfatiza.
No quesito inserção temporal, o diretor e dramaturgo limou, por exemplo, a citação ao jornalista Paulo Francis (1930 - 1997) que havia no início da montagem original. "Porque hoje ninguém saberia quem é. Não é uma pessoa que está mais no cotidiano brasileiro, nem em texto nem em televisão. Quando fiz a peça, em 2006, não tinha ainda dez anos da morte dele, que havia participado do (programa) 'Manhattan Connection', era mais próximo das pessoas. Passados 15 anos, acho que ninguém mais lê Francis, então, imitar a voz dele ficou uma coisa um pouco irrelevante, principalmente porque era um texto agressivo, racista. E se as pessoas não entendessem que aquilo era a voz de outra pessoa, poderiam achar que a peça representa isso - e é justamente o contrário. Aí, no início do espetáculo, coloquei a minha voz imitando a do Ney Latorraca, pela intimidade que tenho com ele. Ele ligando para a Fabiana para desejar merda", diz, fazendo alusão à célebre saudação entre atores que é citada antes da entrada em cena. No mais, se antes a peça se referia a George W. Bush, agora, fala de Donald Trump - como dito, alguns personagens mudam. Não as questões.
Confira, a seguir, outros tópicos da entrevista
Sobre os sentimentos que o assolaram (assolam) nesta pandemia. "Não acredito que seja muito diferente do das outras pessoas. É um ponto de interrogação: o que vai ser? E mostra o ser humano como potencial inimigo: se cuspir em você, você pode morrer. Um simples respirar o mesmo ar pode matar, e isso é uma novidade (para grande parte do planeta), porque gente não pegou o Ebola e outros SARS, passaram distantes. Então, essa é uma coisa que afeta. A gente viu que o outro pode ser um perigo. Sinceramente, não sei se isso um dia vai desaparecer ou se vai ficar, e, portanto, muda todos os costumes, muda sexo, muda a maneira social com se lida com outro... Será que um dia vou poder abraçar alguém, dar um aperto de mão? Não sei! Eu estou vacinado, mas, mesmo assim, a vacina tem as suas questões. Veja, a França está na sua quarta onda, fechou tudo de novo, a Itália também. A Alemanha está em péssimos lençóis. Porque tem essas variantes, a brasileira, a sul-africana, a britânica, isso tudo deixa a gente... Não sei. Penso que vou ter que aprender a viver de novo, ali´s, todo mundo.
Vinte anos de parceria com Fabiana. "Olha, é tão normal! Ela fez não sei quantos espetáculos desde 99, com 'Ventriloquist' (baseado na ópera "Moses und Aron', de Arnold Schoenberg) até aqui, são 22 anos. Fez 'Terra em Trânsito' também em inglês, "Anchorpectoris" (2004)... Ela é ótima, engraçadíssima. Bem, não fosse assim, eu não teria escrito peças para ela, mas escrevi".
Novos projetos. "Uma peça para a Dinamarca, chamada "Oração Gastro-Intestinal" (“Gastrointestinal prayer"), e outra, "Rembrandt Naded e Afraid", baseado num programa de TV bem e..., no qual duas psssoas nuas têm que sobreviver numa selva, acho que no Brasil se chama 'Jogados', algo assim (NR: na verdade, se chama "Largados e Pelados"). Seria um diálogo entre Rembrant e Arthur Bisco do Rosário. E tem uma outra que está em andamento, sobre porcos. Ah, e (Samuel) Beckett. Três curtas de Beckett, que por acaso estou gravando para a rádio WDAI, a mesma que gravei Julian Beck em 1985.
Sobre a empreitada
Como assinalado, o espetáculo foi concebido por Gerald Thomas em 2006, especialmente para a atriz Fabiana Gugli. Após a estreia no Sesc Vila Mariana, cumpriu temporadas em outras duas unidades do Sesc São Paulo, foi representada no Rio de Janeiro e viajou por dois anos pelo Brasil, sendo elogiado por nomes como Bárbara Heliodora ("O Globo"), Macksen Luis ("Jornal do Brasil"), Edward Pimenta Jr. ("Bravo!"), Sérgio Salvia Coelho ("Folha de S.Paulo").
Por sua atuação, Fabiana foi indicada ao Prêmio Shell Melhor de Atriz. Também fez curta temporada, com versão em inglês, no La MaMa Theater, o mais importante teatro experimental de Nova York. Em 2007, representou o Brasil no Festival de Teatro de Córdoba, na Argentina, em uma versão em espanhol.
Serviço
"Terra em Trânsito"
Estreia dia 10 de abril de 2021, às 20h.
Temporada: Dias 10, 11, 17, 18, 24 e 25 de abril, sábados e domingos, 20 horas; a partir de 1º de maio, a peça ficará disponível por 24h, todos os dias, até 31 de maio.
A transmissão gratuita será pela plataforma digital YouTube, com acesso exclusivo pelo link bit.ly/terraemtransito
Ingresso: Transmissão gratuita
Classificação indicativa: 14 anos
Duração: 40 min. (aproximadamente)