O professor, escritor e tradutor Jacyntho Lins Brandão admite que nunca havia investido no gênero poesia (de cunho autoral, ressalte-se), a não ser circunstancialmente. "Como brincadeira - não posso dizer que era 'escrever poesia'. O que fiz na área de ficção antes foi em prosa, de que gosto muito. Então, é sim um investimento novo e uma experiência nova", diz ele, referindo-se a “Mais (Um) Nada”, lançado recentemente pela editora Quixote+Do. O livro reúne 32 poemas, que emergiram ao longo de 2019. "Fui escrevendo os poemas num intervalo mais ou menos próximo. Os últimos, por exemplo, que são longos, foram escritos na sequência em que estão no livro, uma reflexão na linha do 'conhece-te a ti mesmo', dos antigos sábios e filósofos", explana.
 
Nesses poemas, ressalta Lins Brandão, há um dado digno de nota, que é o uso de versos decassílabos e a rima o último verso de cada quadra com o primeiro da quadra seguinte. "Esse experimento com uma forma fixa me libertou de um constrangimento, para dizer assim, em escrever em formas fixas. Por isso tematizei isso no início, com os sonetos sobre o nada, que são, em grande parte, metassonetos, que falam dos próprios sonetos. É claro que o livro tem poemas com estrutura livre, o que quer dizer, com ritmos variados. O ritmo é o que define o poético, que está nessa esfera da voz". 
 
Quando percebeu que tinha em mãos um número de poemas que configurariam um livro, inclusive com suas várias seções, Jacyntho decidiu pela publicação, que traz a orelha assinada por Ana Martins Marques. Professor emérito da UFMG, onde lecionou línguas e literatura grega de 1977 a 2018, Jacyntho, vale lembrar, também foi diretor da Faculdade de Letras e vice-reitor da instituição (no período 1994–1998).
 
Doutor em Letras Clássicas pela USP, é, ainda, sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, tendo publicado livros sobre a literatura grega e as obras de ficção "Relicário" (José Olympio, 1982), "O Fosso de Babel" (Nova Fronteira, 1997) e "Que Venha a Senhora Dona" (Tessitura, 2007). Ao Magazine, Jacyntho falou sobre a nova empreitada, que, vale dizer, traz um poema - "Soneto Partido" - dedicado a seu filho, o jornalista Pedro Guadalupe,  que faleceu em maio de 2018, após um acidente que também tirou a vida de outro conceituado profissional da imprensa, o veterano Ronaldo Lenoir, ocorrido na BR-381, em Nova Era, na Região Central de Minas. O carro em que os dois viajavam (assim como outros veículos) foi atingido por um caminhão desgovernado - Pedro, vale lembrar, tinha apenas 33 anos. Confira, a seguir, alguns trechos da entrevista, que, claro, também abordou os tempos de pandemia.
 
Gostaria que apontasse o quão autobiográficos seriam os poemas... Aliás, poderia exemplificar citando algum? Literatura é ficção, essa é a primeira premissa. Mas é preciso acrescentar as palavras de Fernando Pessoa: "O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente". Isso indica que a ficção da literatura alimenta-se da experiência de vida de cada um ou do meio em que esse um se encontre, desde esferas mais restritas até a própria humanidade. Eu brinco com essa relação entre autor e obra num dos poemas em que o tema é o chamado "eu poético": "O meu papel: meu eu poético,/ Mesmo poético que seja,/ Já não me esconde nem traveste", terminando com a declaração "Veja está nu! - meu eu poético". A seção em que este poema está se chama "Teatro do Mundo", retomando temas da tradição de que a vida é um teatro. Na verdade, o que se conclui será sempre pela indecidibilidade que cerca o "eu poético", que é o que lhe dá profundidade. Para não ficar sem responder algo à segunda parte de sua pergunta, eu diria que os poemas que mais poderiam aproximar os dois "eus" - o poético e o poeta - são os da seção "Topografias". Elas falam de uma experiência de mundo haurida em certos lugares de que gosto muito. Mas o que chega mais perto de mim mesmo é o último poema, "Soneto partido", dedicado a meu filho Pedro, que faleceu num acidente rodoviário em 2018. Em certa medida, no fundo de toda a escrita do livro há um trabalho de luto.
 
Gostaria que escolhesse outro poema, a seu bel prazer, e falasse sobre o processo de feitura dele... Vou citar um poema breve, que constitui uma homenagem ao poeta brasileiro de que gosto mais: Manuel Bandeira. Ele escreveu: 'O teu seio que em minha mão/Tive uma vez, que vez aquela!/Sinto-o ainda, e ele é dentro dela/O seio-ideia de Platão/". Minha reescrita, do ponto de vista de uma poética do nada, da falta, que é a do livro: "O teu seio que em minha mão/esteve nunca, o meu poema/trunca! não há Platão que o diga, de modo que se o siga: a não ideia do seio de ninguém". Eu gosto de textos que nascem de leituras, que expõem nossas leituras e vão conformando redes, genealogias, linhagens. Um outro poema que surgiu assim é "Indimensionada dimensão". Ele tem como ponto de partida uma declaração de Borges, a de que a memória é uma quarta dimensão. 
 
Na sua opinião, que lugar a poesia ocupa em tempos tão áridos como os atuais? Seria um lugar comum dizer que quanto mais áridos os tempos mais necessidade se tem de poesia. Mas isso é absolutamente verdadeiro. Podemos dizer, de um outro modo, que o que a poesia nos permite é a experiência de ver o mundo com os olhos dos outros, ou melhor, não é só isso, mas sentir o mundo com os sentidos dos outros. Ter a perspectiva de alteridade, conseguir pôr-se minimamente na posição do outro, buscando entendê-lo, é algo sempre difícil, uma dificuldade que nos nossos dias parece superlativizada. Não é só uma incapacidade de fazer isso, de buscar compreender o outro, é uma recusa absoluta de tentar isso, o que é mostra de intolerância, intolerância sendo fruto de ignorância. Então, a experiência da ficção, não só na literatura, mas em todas as artes, tem uma função terapêutica. Torna as pessoas mais sábias, mais doces. E a poesia, por ser, digamos, mais intimista, mesmo quando fala do mundo, oferece uma intimidade com o outro maior que as outras formas de arte. Uma experiência de um só com um só, quem escreve e quem lê, quem fala e quem ouve.
 
O que tem visto de interessante na produção póetica recente? Tem muita gente fazendo muita coisa boa. E uma abertura para experimentações variadas. A isso se ajunta o interesse das pequenas editoras em publicar poesia, o que potencializa sua circulação. Seria em princípio uma circulação local, mas a internet possibilita um alcance muito mais amplo. Nós temos nomes já consagrados, como a Ana Martins Marques e Paulo Henriques Britto, em plena produção. Temos o Guilherme Gontijo Flores, que tem escrito muito e a cada novo livro apresenta novas experiências de formas e linguagens. A Maria Ester Maciel publicou suas poesias incompletas num belo volume, muito forte. Gosto muito também da obra da Vera Casa Nova, que, com o Caio Carmona, organizou o alentado volume "Entrelinhas-entremontes", uma antologia da poesia mineira contemporânea, com muita gente boa. 
 
O que está lendo neste momento? Aliás, tem aproveitado a quarentena para ler ou se dedicar a outra fruição artística, como a música, filmes? Falando de hoje (dia em que respondeu às perguntas), estou lendo as obras de Cornélio Pena e também Clarice Lispector. A quarentena não diminuiu meus ritmo de leituras e escrita. Se for para dizer o que é minha obra de quarentena, então é uma tradução do "Enuma elish", o poema da criação babilônico. Já terminei a tradução, feita do acádio, e agora estou escrevendo os comentários ao texto (o livro será publicado pela Autêntica). Isso exige, a cada passo, ler muita coisa, analisar cada verso e cada palavra, um trabalho que me ocupa boa parte do dia. Mas não tira o espaço, no início e no final, para a literatura e o cinema. Claro que tudo em casa. Uma das coisas de que tenho sentido muita falta é sair para ir ao cinema, pela tela grande e pelo próprio acontecimento de sair para ver um filme. Outra coisa de que tenho sentido falta é poder fugir nos fins de semana para Ouro Preto...
 
Como acredita que será o mundo quando tudo isso acabar? Tem uma expectativa positiva ou, ao contrário, negativa? Eu acho que as coisas vão voltar mesmo ao que eram, não tenho grandes expectativas de que iremos aprender algo com a pandemia. Seria bom se a experiência trouxesse alguma sabedoria. Mas para mudar alguma coisa teríamos de mudar o paradigma que rege o mundo de hoje. Deixar de ver as pessoas como meros consumidores, recuperar o lugar da política, que acabou reduzida à economia, reconstruir o espaço público do debate, criar um sentimento de que todos pertencemos à mesma humanidade e que os problemas dela afligem cada um de nós. Não é nessa direção que o mundo vai, mesmo que haja ganhos, com revertérios como o que nos assola agora, no Brasil e no mundo. Mudanças não acontecem de repente, mas dependem de um trabalho que avança pouco a pouco.