Entrevista

Lô Borges fala sobre novo disco, lamenta gestão da pandemia e critica Bolsonaro

Feliz por reeditar parceria com o irmão Márcio Borges em 'Muito Além do Fim', compositor diz que, como cidadão, não tem nada a comemorar e culpa o governo federal: 'Irresponsáveis'

Sex, 05/03/21 - 08h16
"Muito Além do Fim" é o terceiro disco que Lô Borges lança nos últimos três anos | Foto: Rodrigo Brasil/Divulgação

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Lô Borges atende o telefone no meio de uma tarde ensolarada em Belo Horizonte. Antes de começar a falar sobre “Muito Além do Fim”, disco que chega hoje às plataformas digitais nesta sexta-feira (5), ele pede alguns minutos para dar um depoimento em tom de desabafo. Lô Borges está angustiado e feliz, por mais estranho que possa parecer experimentar intensamente dois sentimentos tão paradoxais.

Pelo segundo ano consecutivo, o cantor e compositor, um dos craques do Clube da Esquina, lança um álbum na pandemia - “Dínamo”, parceria com Makely Ka, saiu no início de março do ano passado, poucos dias antes no colapso sanitário mundial, e a turnê foi prontamente cancelada.

Lô diz que apresentar mais um disco, o terceiro de inéditas nos últimos três anos, é, claro, um motivo de alegria, mas agora o cenário pandêmico apresenta um agravante: “Agora está 10 vezes mais grave. Lidar com a alegria e com a tristeza me dá um contraponto estranho, diferente. A música me traz felicidade, mas como brasileiro não tenho motivos para comemorar”. O compositor lamenta as milhares de mortes diárias, a onda negacionista que tomou conta de parte da sociedade e critica a atuação do presidente Jair Bolsonaro na pandemia.

“Ele tem total responsabilidade nisso, negou (a pandemia) desde o começo. O governo federal e o Ministério da Saúde são patéticos, irresponsáveis e incompetentes. É muito triste”, afirma. Depois de cinco minutos falando ininterruptamente, em tom urgente, Lô Borges suspira: “Vamos falar de coisa boa”.

“Muito Além do Fim” marca o retorno, depois de nove anos, da profícua parceria do músico com o irmão, o poeta e letrista Márcio Borges, que assina as dez faixas do álbum. Aliás, é para Márcio “e ao amor” que sente por ele que o cantor dedica o disco. O tributo ao irmão se justifica. Foi Márcio quem mais o incentivou a entrar com os dois pés na música, a aprender violão. Também foi Márcio, seis anos mais velho, ao ver o irmão recém-chegado ao mundo, quem pediu que sua mãe lhe desse o bebê de presente. “E ele fala que cuidou muito bem de mim”, brinca Lô. 

“Ele é meu parceiro majoritário, 60% das músicas que fiz na vida foram com ele e achei que estava longo demais esse hiato de fazermos música juntos. Ele é um letrista genial, sou muito fá dele”, acrescenta, sem esquecer de citar o também irmão Marilton e Milton Nascimento como figuras fundamentais em sua vida.

A colaboração entre a dupla, pausada por uma década, aconteceu como sempre: Lô compõe a melodia no violão ou no piano e manda para o parceiro, que põe a letra. Receita infalível. No fim de 2019, o músico enviou o que havia composto, e as letras começaram a chegar ao longo de 2020. A novidade da vez tem a ver com a maneira como o disco foi gravado. Devido à pandemia, Lô Borges não se reuniu uma vez sequer com a banda, formada por Robinson Matos (bateria), Thiago Corrêa (contrabaixo) e Hanrique Matheus (guitarras).

Thiago e Henrique assinam a produção junto com Lô, que faz as vezes no piano e nos violões. Tudo foi registrado separadamente. “É a primeira vez que gravo assim. Nossas conversas foram pelo WhatsApp, só encontrei com o Henrique, mas os músicos são muito talentosos. ”, observa.

Mais pulsante

Em “Muito Além do Fim”, Lô investiu em sua veia roqueira, deixada mais escondida nos últimos dois álbuns - “Dínamo” e “Rio da Lua”, este em parceria com Nelson Angelo. O compositor conta que queria algo pulsante, vigoroso: “Eles me mandavam os arranjos e eu falava: ‘quero mais peso, vamos botar guitarra o tempo todo’”. Isso fica nítido ao longo dos quase 40 minutos do disco, basta escutar “Vida Ribeirão”, “Caos”, “Muito Querida”, “Copo Cheio” e “Terra de Gado”. Essa última guarda uma curiosidade: composta em 1999, a faixa não se encaixou nos trabalhos de Lô desde então. Até que chegamos a 2020.

“O lixo ocidental amontoou no quintal/ O futuro perdeu sua hora/ Tá tudo agora demais/ Quem trabalha em paz/ Não merece nenhuma atenção (...) Ser medíocre vale ouro/ Ouro de tanto babaca”, diz a letra. “Com essa coisa fascista e barra-pesada que o Brasil vive, achei que era o momento dela entrar em cena. Tem tudo a ver com os tempos de hoje, a letra é uma pancadaria do Márcio. Ele foi premonitório, abriu a caixa de ferramenta”, ressalta Lô.

“Muito Além do Fim” tem participação de Paulinho Moska, que divide a canção-tema com Lô e escreveu um belo texto de apresentação do álbum. “Gosto muito dele. Quando eu estava fazendo a música ele me veio à cabeça, fiquei até mais inspirado. A participação dele é inspiradíssima”, diz, para fazer piada depois: “Acertei na mosca, com ou sem trocadilho”. Com ar de rock progressivo, “Piano Cigano” encerra o álbum. 

Aos 69 anos, completados em janeiro, Lô Borges diz estar em plena forma. Nos últimos 10, 15 anos, as melodias brotam incessantemente. A composição está completamente incorporada ao seu cotidiano e ele se dedica a esse ofício naturalmente como quem bebe um copo d’água, toma café ou almoça. “Compor é meu alimento espiritual, é quando consigo me sentir pertencente a um mundo que já era difícil antes da pandemia. Se eu perder isso, vou ficar um velho rabugento”, destaca.

Em plena forma, o cantor tem produzido bastante e, no seu celular, guarda material para "mais uns 20 discos". No segundo semestre ele deve começar a gravar alguns materiais, mas isso é assunto para outra conversa.

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