“É como quando a gente passa por um acidente: você sabe que a coisa é feia, mas quer ver mesmo assim”. A frase de Davi Garcia, editor do site Ligado em Série, resume bem a atração do público pelo macabro e a curiosidade mórbida pelo lado obscuro da Força. E poucas coisas na história da cultura pop são tão obscuras e mórbidas quanto as mentes dos psicopatas Norman Bates e Hannibal Lecter, de “Psicose” e “O Silêncio dos Inocentes”, respectivamente.
Dois dos vilões mais icônicos do cinema, eles migraram para a televisão recentemente, nas séries “Bates Motel” e “Hannibal”. As duas exploram suas mentes criminosas, inserindo-as em universos que servem de terreno fértil para seus desvios, ao mesmo tempo em que funcionam como extensão deles.
“Bates Motel” estreou no Universal Channel ontem, às 22h. Já “Hannibal” teve sua primeira temporada exibida recentemente no Sony Entertainment Television.
A reimaginação desses personagens na televisão, que a princípio podia soar como uma heresia para os fãs, não é por acaso. Desde Tony Soprano, passando por “Dexter” e o Walter White de “Breaking Bad”, a TV se tornou o lar dos anti-heróis e protagonistas moralmente condenáveis. Com o histórico, visitar dois paradigmas desse “hall dos perturbados” se tornou quase inevitável.
Segundo o professor de comunicação da UFMG, Renné França, isso aconteceu porque esses são todos personagens complexos que, para terem a simpatia/identificação do público, precisam de um arco dramático desenvolvido de forma mais longa. “É um meio em que se pode fugir mais facilmente de arquétipos e clichês, que costumam ser usados para resolver no cinema de forma mais rápida determinadas questões que a TV pode desenvolver com calma”, ele explica.
Esse é, na opinião de Davi Garcia, um dos grandes trunfos de “Hannibal”. A série acompanha Lecter (vivido pelo dinamarquês Mads Mikkelsen, de “A Caça”), enquanto ele serve de terapeuta e consultor para o agente do FBI Will Graham (Hugh Dancy), especialista na caça de serial killers.
O formato espelha a relação entre Hannibal e Clarice Starling (Jodie Foster) em “O Silêncio dos Inocentes”, com a trama policial servindo para o desenvolvimento dos dois personagens através da manipulação mútua – algo que, para Garcia, foi perdido nos filmes seguintes da série no cinema. Curiosamente, Graham apareceu em um desses longas, “Dragão Vermelho”, onde foi interpretado por Edward Norton.
O diferencial em “Hannibal”, o seriado, é que ninguém sabe ainda que, por trás da inteligência e refinamento de Lecter, reside um psicopata canibal. Mais que isso, porém, Garcia afirma que a série consegue atribuir um caráter mais complexo não só aos dois protagonistas, mas aos outros personagens com quem eles interagem, dando a eles nuances que não se têm a oportunidade de ver no cinema.
“Isso acaba tornando o próprio Hannibal mais rico porque, se ele é capaz de enganar tantas pessoas que convivem diariamente com psicopatas e serial killers, ele se torna um personagem muito mais interessante”, analisa o editor.
Criada por Bryan Fuller (“Pushing Daisies”), “Hannibal” transpõe não só o formato do longa de Jonathan Demme para a TV. A ambientação reflete o mesmo clima claustrofóbico e tenso, sem nenhuma fonte de luz ou leveza, com o consultório do protagonista escuro e sombrio, semelhante ao covil de Anthony Hopkins no filme original. “É como uma teia de aranha para a qual ele consegue atrair todo mundo sem que eles percebam”, avalia Garcia.
Mas se “Hannibal” trabalha com um personagem já estabelecido, a diferença de “Bates Motel” é que ela retrata um psicopata em formação. A série acompanha a juventude de Norman Bates (Freddie Highmore, de “A Fantástica Fábrica de Chocolates”), especialmente sua relação com a mãe, Norma (Vera Farmiga, de “Amor sem Escalas”), para revelar “as bases do que viria a ser a personalidade bem doentia do personagem que a gente conhece adulto”, como bem coloca o editor do Ligado em Série.
Highmore afirmou em várias entrevistas que estudou a antológica performance de Anthony Perkins como Bates para construir sua caracterização. E as similaridades nos trejeitos físicos e no olhar que revela a raiva reprimida são impressionantes.
Ainda assim, Garcia acredita que, ao contrário de “Hannibal”, “Bates Motel” pode explorar outros lados de seu protagonista. “O Norman ainda é só um garoto adolescente com vários conflitos e isso permite conhecer outras facetas do personagem”, considera.
O editor destaca também que, apesar de ter trazido a história para os dias atuais, “com os personagens usando iPhones”, “Bates Motel” manteve um universo retrô que reverencia os anos 1960 no design de produção, no carro e na casa da família, e mesmo no figurino deles. Mais que isso, “quando você vê as interações entre o Norman e a mãe dele, tem sempre a sensação de ver algo atemporal, de outra época”, ele afirma.
Para Garcia, apesar de se tratar da história de Bates, é a mãe que ao mesmo tempo carrega o espírito do longa de Alfred Hitchcock e faz da série um produto original.
A performance de Vera Farmiga capta o humor negro do mestre do suspense diante das mais diversas situações enfrentadas pela matriarca – a ideia originada do universo do cineasta de que o assassinato acaba se tornando uma parte das tarefas domésticas de seus personagens.
“Ao mesmo tempo, Normaa tem as explosões dela e o público nunca sabe se ela é só mesmo uma mãe superprotetora ou se está manipulando o filho”, ele avalia.
Segundo o editor, é essa mistura dos elementos icônicos dos filmes originais explorados em um novo universo que tornou as duas séries tão bem-sucedidas. “O primeiro te envolve e o segundo gera uma identificação, fazendo você torcer pelos dois e desejar que eles não se tornem os assassinos e façam as coisas horríveis que a gente sabe que eles vão fazer”, brinca.