Foi com a gravação de “Se Acaso Você Chegasse”, de Lupicínio Rodrigues (1914-1974), que Elza Soares passou a circular com maior reconhecimento no meio da música. De lá para cá, foram décadas de persistência para se manter fazendo o que mais gosta – tendo já trabalhado como empregada doméstica, operária de fábrica de sabão e lavadora de roupas.

Em 2015, quando lançou “A Mulher do Fim do Mundo”, seu primeiro disco de inéditas, Elza voltou de maneira avassaladora à cena musical. Desde então, a trajetória dessa artista, símbolo de resistência, tem sido revista e celebrada.

São exemplos a biografia autorizada “Elza”, escrita pelo jornalista e apresentador de TV Zeca Camargo e lançada agora pela LeYa; o musical de mesmo nome dirigido por Duda Maia, que faz curta temporada no Cine Theatro Brasil Vallourec no próximo fim de semana; e o documentário “My Name Is Now”, de Elizabeth Martins Campos, em cartaz na cidade; além de uma cinebiografia em que Taís Araújo interpreta novamente a cantora (a atriz já tinha feito isto em “Garrincha: Estrela Solitária”), prevista para 2019.

Toda essa projeção é coerente com a grandeza da homenageada que, como observa Camargo, sempre ancorou-se no presente, buscando reinventar-se. “Elza não é muito de olhar para trás. Algo que ela sempre gosta de dizer é ‘My name is now’ (meu nome é agora)”, pontua Camargo, que escreveu “Elza” a partir de 40 horas de depoimentos da própria artista. “Elza tem uma memória prodigiosa para quem, como a gente brinca, tem algo entre 85 e 88 anos de idade”, atesta o jornalista.

No livro, Camargo detalha os passos palmilhados pela artista, que, no início da década de 50, saía à noite de casa para cantar na rádio Tupi, sem dizer para a família o verdadeiro motivo de sua ausência. Já casada e com o marido, Alaordes, internado em razão de uma tuberculose, ela contava a sua mãe, Rosária, que precisava atender a um pedido da sua patroa (enquanto trabalhava como empregada doméstica), pois só assim não seria repreendida.

Após sair do hospital, mas ainda debilitado pela doença, Alaordes, certo dia, a surpreendeu e, depois de insinuar que havia descoberto a atuação dela no rádio, desferiu dois tiros contra a cantora. Um deles pegou de raspão e abriu uma ferida no braço da artista. “O que ele queria era me impedir de cantar, nem que tivesse que me matar”, relata Elza na biografia.

Outros obstáculos também vieram com o racismo, do qual pouco se falava na época, mas a cantora percebeu a gravidade do problema a partir de sua experiência. “Um dia ela foi contratada para cantar na Orquestra de Bailes Garan, mas a apresentação aconteceria em um clube onde os contratantes não queriam uma negra cantando. Ela, então, ficava na coxia”, recorda Camargo.

Em outro momento, já na rádio Tupi, Elza teve uma gilete colocada dentro do vestido, o que provocou um corte quando ela se movimentou, fazendo o sangue escorrer e tingindo sua roupa de vermelho. “Esses fatos a fizeram tomar consciência de como o preconceito a prejudicava, e ela começa a elaborar isso em sua cabeça, compreendendo a importância de se combater o racismo”, diz o biógrafo.

Revelações

Na intimidade das entrevistas com Camargo, surgiram revelações. "No meio dos anos 80, logo depois que o filho dela com o Garrincha, o Júnior, morreu (num acidente de carro, em 1986), a Elza pira, literalmente: perde o eixo e cai nas drogas. No livro, é a primeira vez em que ela fala abertamente: ‘Eu subi o morro, cheirei cocaína, eu estava sem saída’”, relata o jornalista. “No dia seguinte, a Elza pediu para retirar aquilo do livro, porque se sentia vulnerável. Eu disse que ia escrever o episódio dentro de um contexto e dar para ela ler. Ela leu e disse que estava legal. No fim, mesmo os episódios mais dramáticos e talvez mais constrangedores que ela contou entraram”.

Segundo Camargo, uma das preocupações da cantora é que “Elza” não fosse um livro “sobre o Mané”. “Ela tinha um argumento engraçado: ‘Fui casada com o Garrincha 17 anos, eu tenho 87: sobram 70 anos’”.

Ao comentar o modo como ela relaciona-se com tudo que viveu, Camargo pontua que a cantora não alimenta rancores. “Elza sabe que tem uma história e que a atravessou bem, saiu vencedora. Então, quando se refere ao passado, ela diz que não se sente vingada, com a sensação de que deu o troco para a vida, mas que se sente feliz e realizada”, diz Camargo, que no prólogo escreveu: “Esta é a história de Elza que zombou da ziquizira, chamou pra zoeira, tirou da zica e da dor, prazer e luz”.

Diferencial

É muito conhecida a história da primeira apresentação pública de Elza no programa “Calouros em Desfile”, apresentado por Ary Barroso. Foi lá que a artista revelou seu espírito determinado ao não se curvar às provocações de Barroso. Este ao perguntar ironicamente de qual planeta Elza teria vindo, ficou desconcertado com a resposta da até então desconhecida, que disparou em seguida: “do planeta fome”. 

Para Camargo, o diferencial de “Elza” é justamente a maneira como situa o leitor em cenas como essa, priorizando a riqueza de detalhes. “Todo mundo já leu milhares de entrevistas com ela, e alguns episódios são muito conhecidos, ao ponto de terem ficado desgastados. Você sabe que ela foi no programa do Ary Barroso e que ele perguntou de que planeta ela vinha (‘do planeta fome’, respondeu Elza, classicamente). A ideia era pegar episódios muito conhecidos e recontá-los de uma maneira mais rica. Quem estava na plateia? O que ela sentia? Com que roupa estava? Como era a voz do Ary Barroso?”.

Segundo o jornalista, quando se deparar com essa passagem, o leitor vai ter a sensação de ouvir as risadas das pessoas, a voz meio ranzinza de Ary e sentir a aflição que Elza estava passando. “Esse diálogo você vai encontrar no Wikipédia, não é novo, mas a ideia era criar cenas um pouco mais fortes com uma linguagem quase cinematográfica, o que é um atrativo para o público mais jovem, que se criou a partir das imagens do cinema”, afirma Camargo. (Com agência)

“Elza”, de Zeca Camargo

Editora Leya

348 páginas

R$ 54,90