Luiz Melodia

Adeus ao pérola negra

Uma das vozes mais singulares da música brasileira, cantor e compositor carioca morre aos 66 anos, no Rio

Sáb, 05/08/17 - 03h00
Planos. Animado, Luiz Melodia planejava voltar a palcos e estúdios até o fim do ano | Foto: Daryan Dornelles / Divulgação

RIO DE JANEIRO. O cantor e compositor carioca Luiz Melodia, o eterno pérola negra, não resistiu às sessões de quimioterapia que fazia para combater um câncer na medula óssea e morreu, nessa sexta-feira (4), aos 66 anos, no hospital Quinta D’Or, no Rio. O autor de sucessos como “Magrelinha” e “Estácio Holly Estácio” lutava há meses contra o mieloma múltiplo e chegou a ser internado na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) durante as sessões de quimioterapia. Em abril passado, a família informou, pelas redes sociais, que o estado de saúde do artista havia melhorado e agradeceu o acolhimento, o carinho e o respeito dos fãs.

No mês seguinte, ele realizou um transplante de medula. Muito fraco e precisando recuperar sua imunidade, permaneceu internado, mas não resistiu ao tratamento. “É uma doença traiçoeira. Ele foi para o hospital fazer quimioterapia, mas não aguentou”, afirmou a mulher do cantor, Jane Reis. O corpo do artista foi velado na quadra da escola de samba Estácio de Sá, nessa sexta-feira, e o enterro está marcado para as 10h deste sábado (5), no cemitério do Catumbi, no Rio.

Trajetória. Cria do morro de São Carlos, no Estácio, Luiz Carlos dos Santos conviveu com a música desde seu nascimento, graças a seu pai, Oswaldo, que era violonista e compositor e já tinha o apelido que o filho herdaria, Melodia. “Nesse contato, não só com ele, mas com toda a vizinhança do morro, do largo do Estácio, eu fui absorvendo. O rádio também foi muito importante, família humilde, foi o primeiro meio de comunicação que entrou na minha casa”, disse o cantor em entrevista em 2013.
Ciente do preconceito que vitimava os sambistas à época, Oswaldo não estimulou a veia artística do filho – preferia que ele lhe imitasse a carreira de funcionário público. Melodia, no entanto, começou a compor e a cantar ainda na adolescência, apresentando-se com sucesso em festas no morro e em concursos de calouros nas rádios.

Fez parte de duas bandas de garotos – Filhos do Sol e Os Instantâneos – que tocavam em bailes, mas, àquela altura, já alternava trabalhos como tipógrafo, vendedor e caixeiro.

Sua sorte virou no início dos anos 70, quando conheceu Rose, uma garota cuja família morava no Estácio, e mudou-se para o São Carlos. Amiga do poeta e agitador cultural Waly Salomão (1943-2003), ela levou-o ao morro e apresentou-o a Melodia, que já tinha inúmeras composições – entre elas, algumas que virariam clássicos, como “Pérola Negra” e “Farrapo Humano”.

Salomão apresentou o cantor a sua trupe tropicalista, incluindo o poeta e jornalista Torquato Neto (1944-1972), que usou sua coluna no jornal “Última Hora” para divulgar o “negro magrinho com composições interessantes, do morro do São Carlos”.

Também sugeriu a Gal Costa que gravasse “Pérola Negra”, o que a cantora fez com grande sucesso, jogando luz sobre o compositor, que passou a ser empresariado pelo poderoso Guilherme Araújo (1937-2007).

Foi com essas “costas quentes”, como dizia, que Melodia lançou seu primeiro disco, em 1973, aos 22 anos. Com dez canções em 28 minutos, misturando choro, samba, rock, blues, soul e até foxtrote e forró, “Pérola Negra” tornou-se clássico instantâneo.

Pressionado pela gravadora (Phillips) a lançar logo um segundo LP, Melodia começou a se indispor – também porque os executivos lhe sugeriram um álbum só com sambas, para poder vendê-lo com o rótulo de “sambista”.

“O lance fonográfico era barra. Se pudessem, eles te usavam de maneira que você não mostrava sua arte. Queriam só números, e eu não viajava naquela onda”, disse certa vez. Mesmo iniciante, Melodia marcou posição – e pagou por isso. “Começou uma coisa maluca de os caras não entenderem o que eu queria e começarem a me ver como difícil. Fiquei anos sem gravar”, afirmou. Seu segundo disco, “Maravilhas Contemporâneas” (1976), ajudou a consolidar seu nome, com sucessos como “Juventude Transviada” – que entrou na trilha da novela “Pecado Capital”, da Globo – e “Congênito”.

Ao longo dos anos 80 e 90, passaria a compor menos e lançaria uma série de discos de pouca repercussão – seu grande sucesso no período foi a regravação “Codinome Beija-Flor”, de Cazuza, para a trilha da novela “O Dono do Mundo” (1991). “A única música que o Cazuza gravou e outro artista fez melhor foi o ‘Codinome Beija-Flor’, com o Luiz Melodia”, declarou a mãe de Cazuza, Lucinha Araújo, à época.

Redescoberta. Na virada do século, um bem-sucedido projeto acústico ao lado do violonista Renato Piau, seu amigo e parceiro, fez com que suas canções fossem revalorizadas, e seu nome, descoberto por uma nova geração. Seguiria fazendo shows e gravando discos – lançou seu último álbum de estúdio (“Zerima”) em 2014. Até o fim, manteria a característica elegância no palco e a voz poderosa, levemente rouca e anasalada, com que interpretava sucessos seus e alheios.


Memória

A generosidade de Melodia

Mineiros relembram momentos em que dividiram palco e histórias com o compositor e intérprete de “Pérola Negra”

FOTO: PAULO LACERDA/FUNDAÇÃO CLÓVIS SALGADO/DIVULGAÇÃO
Em cena. Luiz Melodia foi uma das atrações do projeto “Sinfônica Pop”, em dezembro de 2015

Luiz Melodia era um artista extremamente generoso. A declaração é unânime entre aqueles que, em algum momento da vida, conviveram com ele. Segundo alguns artistas mineiros ouvidos pela reportagem do Magazine, além do talento, Melodia tinha como suas marcas registradas a alegria e a simpatia.

O último encontro do cantor e compositor com o público mineiro foi em 2015, no Palácio das Artes. Nos dias 8 e 10 de dezembro, ele subiu ao palco do Grande Teatro como atração do projeto Sinfônica Pop. Ao lado da Orquestra Sinfônica, revisitou alguns de seus grandes sucessos. O maestro Sérgio Gomes, que regeu a orquestra naquelas noites, relembra a forma divertida e entregue com que Melodia encarou a empreitada. “Desde o primeiro ensaio (foram três), eu sentia nele uma expectativa e uma alegria enorme de estar participando. No segundo dia de ensaio, ele precisou ir à  São Paulo. Eu me recordo de ele ter ficado chateado de ter que se ausentar”, relembra.

A sambista Doris Samba também dividiu palco com Melodia. O encontro foi em 2011, dentro do projeto Sesc MPB, no Parque Municipal, em Belo Horizonte. “Foi chegando o fim do show e ele estava tão entusiasmado que não queria parar de cantar”, relembra a sambista.

Responsável pela produção da apresentação, Pedrinho Alves Madeira conta que Melodia mostrou uma enorme generosidade com Doris. “Não foi arrogante nem estrela, mostrou ser de uma generosidade enorme. Dividiu o palco e interagiu com o público. Foi uma manhã inesquecível”, comenta Alves Madeira. “E o show foi o recorde de público do projeto. Deviam ter umas 10 mil pessoas no Parque Municipal naquela manhã”, recorda o produtor.

Amigo de Melodia, o produtor e apresentador Tutti Maravilha lamenta a perda. “Conheci o Melô na década de 1980. Depois que fui para o rádio, não teve show em Belo Horizonte que ele não fizesse questão de ir ao meu programa. Às vezes, segundo ele, deixava de almoçar para ir lá conversar comigo”, lembra Tutti. “Perdemos um gênio e um gênio único e original”, lamenta o apresentador.

Referência. Maurício Tizumba, que foi amigo do carioca, chama atenção para o grande legado que o compositor de “Pérola Negra” deixou. “Melodia é a nossa referência de música negra. Um camarada que não precisava falar nada pela causa. Ele simplesmente cantava a raça negra. Era nosso símbolo de resistência”, define Tizumba. “Ele tinha uma voz, uma musicalidade e uma letra extremamente originais. Melodia foi uma figura única na MPB,” define Tizumba.

O poeta mineiro Ricardo Aleixo, que em seu último livro “Antiboi” (Crisálida, 2017) incluiu um poema em homenagem ao cantor e compositor, também comenta a importância de Melodia para a cultura negra. “Ele é o ponto de mutação na cultura brasileira, não só na música, mas com relação à possibilidade dos artistas negros se desenharem enquanto totalidade sonora, poética, imagética, com um nível nunca antes visto de consciência do seu próprio corpo, semiológica, como informação”, conclui Aleixo. (Franco Malheiro)

 

Análise

Luiz Melodia subverteu o samba de forma primorosa

Luiz Melodia foi sambista a vida toda. No entanto, é difícil lembrar de uma música dele que seja um samba limpo, dentro da cartilha. Ele gostou de tal maneira da música negra americana que tudo já saiu de uma forma mesclada, com experimentação de jazz e levada soul. Embora pensasse que criava sambas para honrar a tradição do Estácio, na verdade ele estava subvertendo o gênero de forma primorosa. Aproximar Billie Holiday do samba-canção parecia a coisa mais natural do mundo.

Seu repertório não era claramente dividido entre canções românticas e outras ligadas a uma temática social, como outros fizeram muito, caso de Gonzaguinha. Melodia falava de amor enquanto elegia personagens como a mulher que lava roupa todo dia. Muitas vezes ele foi colocado ao lado de outros cantores e compositores nos anos 70, numa galeria de supostos malditos. Nomes como Jorge Mautner, Walter Franco, Jards Macalé. Na verdade, com eles ele repartiu apenas o mesmo caminho para inserção no mercado musical: os festivais.

Quando lançou “Pérola Negra”, em 1973, correu um grande risco de se transformar numa espécie de Orson Welles desses cantores malditos. Como o cineasta americano que estreou com “Cidadão Kane”, alguns pensaram ser difícil repetir um disco como aquele. O álbum ainda impacta hoje. Parece um trabalho maduro. Na verdade, um jorro de ideias musicais inovadoras, de vigor juvenil, que fica disfarçado de obra refinada com muito esmero.

Três anos depois, ele contrariou qualquer expectativa negativa e lançou algo tão poderoso quanto a estreia. “Maravilhas Contemporâneas”, além da excelência de suas composições, teve um respaldo de propaganda fortíssimo da gravadora Som Livre. A inclusão da faixa “Juventude Transviada” na trilha da novela “Pecado Capital”, um dos maiores sucessos globais da década, fez com que, por um tempo, Melodia flertasse com o grande sucesso popular.

Mas ele sempre foi um artista indomável, não fazia concessões às gravadoras. Não permitia intromissões na escolha do repertório, nos arranjos. Sabia bem o que queria. Assim, sua música de qualidade inquestionável foi migrando para um público cada vez menor.

Assim como Tom Zé e Jards Macalé, orientou sua carreira para lançamentos fonográficos independentes e para shows em circuitos alternativos, bancados por um público majoritariamente universitário.

Nas duas últimas décadas, foi mais fácil encontrar o trabalho de Melodia em CD de coletâneas de sucesso do que em seus álbuns autorais. Hits como “Ébano”, “Maravilhas Contemporâneas” e “Juventude Transviada”, presentes em todos esses discos de antologia, ajudaram Melodia a ganhar novas gerações de fãs. Em uma de suas últimas aparições públicas, no Prêmio da Música Brasileira do ano passado, cantou Grito de Alerta, de Gonzaguinha, em dueto com Angela Ro Ro. O encontro de três errados da MPB. Gente que transgride, que faz diferente, que não se dobra. Gente que faz muita falta quando vai embora. (Thales de Menezes)

Cinema e TV

Luiz Melodia participou de algumas produções cinematográficas: “Quase Dois Irmãos” (2004) e “Casa de Areia” (2005). Na TV, atuou na novela global “Bang Bang” , de 2005.

Repercussão

“Tive a honra de ser a primeira cantora a cantar uma de suas composições. Pérola negra te amo te amo.”
Gal Costa

“Notícia triste na manhã de sexta. Descanse em paz.” Gilberto Gil

“Dia muito triste pela partida de Luiz Melodia. Sentiremos falta.” Caetano Veloso

“Vira Lata. Brasil todo numa criatura só. A voz mais linda. Amor eterno.” Céu

“Melodia sempre foi e possivelmente continuará sendo a voz mais bonita da música brasileira.” Frejat

“Um dos dias mais tristes. Perdemos Luiz Melodia. O mundo fica sem Melodia. Coração estarrecido.” Zezé Motta

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