Angela Ro Ro, 67, mudou muito nos últimos anos, como supõe a verve afeita à criatividade, mas uma característica se mantém inalterada: mesmo antes de lançar o seu primeiro disco, em 1979, ela já era um ícone do underground carioca pela postura destemida e libertária, tanto que, ao receber o convite para estrear no mercado fonográfico saiu-se com essa: “Mas eu já sou conhecidíssima”. E era, de fato. O próprio título do novo álbum oferece uma pista para lá de generosa do que vem pela frente. “Selvagem”, como ela já se auto-referenciou em entrevistas, acrescentando o termo “vovó” antes, professa, nas 11 faixas, discurso que se assenta entre o lirismo e a irreverência.
Quando Ro Ro acerta, não há quem possa. Embora distante do brilhantismo de seus clássicos, como as doídas “Gota de Sangue” e “Fogueira”, a dilacerante “Mares da Espanha” ou a irresistível “Balada da Arrasada”, a faixa-título, que abre os trabalhos, entra com calor no ponto nevrálgico de sua trajetória. “Sou livre e não adianta/ tentar me cortar a garganta/ selvagem, me sobra coragem/ pra traçar minha própria viagem”, entoa com a voz grave, propícia para esse blues rasgado que ganha pitadas de rock.
Confissão. Não foi por trapaça do destino que a compositora se tornou referência para nomes como Cazuza (1958-1990, parceiro em “Cobaias de Deus”), e Marina Lima. É o tempero e as desventuras da própria vida que Ro Ro utiliza como matéria-prima de seu “ganha-pão”. Daí a expressão “confessional” para definir sua música, que também se atribui a Marina e ao autor de “Exagerado”. Logo, é inevitável a identificação de um público ansioso por mais liberdades frente aos versos que encerram o xote “Parte com o Capeta”, a última do CD e uma das mais inspiradas.
“Sou filha da vida/ e da natureza/ até no feio, vejo a beleza/ quando faço o bem, não importa à quem/ mas se me aperreio/ sai da frente, eu não tenho freio”, balança a cantora, com sua voz que, mesmo marcada, consegue ser elástica. Na melancólica “Nenhuma Nuvem”, ela lamenta: “me desespero por esperar alguém que nunca mais vai voltar/ nenhuma lágrima molha meu rosto/ nem mais um gosto no paladar”; enquanto em “Sai de Mim”, é definitiva: “prefiro o meu inferno/ a rigor, de gravata e terno/ (...) eu quero dançar sozinha e com toda a cidade”. Se é verdade que a falta de um aporte financeiro na produção resulta em arranjos pobres, feitos apenas com as programações eletrônicas do teclado de Ricardo Mac Cord (companheiro nas últimas empreitadas de Ro Ro), por outro lado a qualidade poética das canções, sobretudo pela agudez das letras, destaca-se. Ainda mais num cenário cujo ressentimento de palavras críticas e pulsantes, sem que uma condição anule a outra, é cada vez maior.
Deste mal Ro Ro não padece, muito pelo contrário. Para compensar as condições inóspitas para a execução das melodias, a artista recorre a outro hábito: transita por ritmos variados. Bilíngue, a balada “Portal do Amor” coloca peso no álbum e traz a lembrança de Janis Joplin, para quem Ro Ro dedicou “Blue Janis”, em 1986 (no disco “Eu Desatino!”). “Meu Retiro”, “Caminho do Bem” e “De Todas as Cores” são números menos interessantes, o que torna o disco irregular.
A bossa “É Simples Assim...” e o sambão “Maria da Penha” encontram boas soluções, mas permanecem como registros de menor fulgor na obra dessa artista que, sem dúvida nenhuma, é das mais importantes na história da música brasileira. Sem beber, fumar e com uma rotina de alimentação vegetariana (ela ressalta numa composição: “não como mais animal”) conjugada a exercícios diários, Ro Ro permanece com a cabeça nas nuvens, a língua afiada e, sobretudo, um coração que ao ser apertado libera seu fluxo criativo através de um canto livre e selvagem.