Um homem de pele morena, olhos castanhos, de estatura mediana, com barba e cabelos crespos. Depois de pesquisas com especialistas forenses em reconstruções faciais realizadas na Inglaterra, parte do mundo científico resolveu oferecer esta como a verdadeira imagem de Jesus Cristo, contrariando séculos de identificação europeia com o sujeito loiro de cabelos claros e pele branca, retratado inúmeras vezes em consagradas obras de arte.
A ressurreição de um conservadorismo de Estado na sociedade contemporânea tem fortes ligações com os representantes da religião na Terra, em especial as igrejas de matriz evangélica. Num tempo em que há quem volte a questionar, inclusive, o formato do planeta onde por ora habitamos, vem a calhar a provocação do crítico de cinema Inácio Araújo: “É muito confusa essa história de começar macaco e acabar homem. Mais vale alguém dizendo que Deus fez Adão e Eva, e pau na máquina. (...) Por que pensar, afinal, se Deus já pensou por nós?”.
Pois o rapper Baco Exu do Blues, que acaba de lançar seu segundo álbum, dispensa a ironia em favor de uma contestação explícita. O filho de Deus é citado nominalmente em duas faixas de “Bluesman”, que, além de ser o nome do disco, batiza a música de abertura, onde ele afirma: “Jesus é blues”. A explicação da sentença vem imediatamente antes: “Tudo que quando era preto era do demônio e depois virou branco e foi aceito eu vou chamar de blues”.
Já em “Kanye West da Bahia” ele alude à “imagem que vocês criaram” de Cristo. A canção, aliás, agrega ao som do baiano ritmos caribenhos que, num primeiro momento, nos remetem a uma aura do passado, como alguns filmes clássicos dos anos 50. Mas o discurso do cantor corta como lâmina essa impressão e deixa claro: Diogo Alvaro Ferreira Moncorvo, 22, cujo nome artístico é feito pela união do deus grego do hedonismo com o mais temido dos orixás, fala para e sobre os dias atuais.
Gênero. Em sua estreia no mercado fonográfico, Baco Exu do Blues também fazia referência a Jesus na capa do CD, ao alijar as primeiras e últimas letras da palavra para incensar Esú, que na língua iorubá representa o orixá responsável pela comunicação entre o céu e os homens. Agora, ele parece querer explorar a última parte de seu codinome artístico. A foto que ilustra o novo trabalho apresenta um homem negro empenhando uma guitarra dentro do Carandiru, um dos maiores presídios da história do Brasil, famoso pelo massacre que causou a morte de 111 detentos em 1992.
A indignação com o massacre diário contra os excluídos, em sua maioria pretos, pobres e moradores de favelas, tem seu ponto alto em “Preto e Prata”, que reproduz sons de metralhadora e sabe tratar com perspicácia a similaridade entre rimas e onomatopeias. A derradeira “BB King” é outro destaque, com citações que vão do jogador de futebol Cristiano Ronaldo ao poeta Jack Kerouac. No entanto, o blues é referência também pelo discurso amoroso, ou como em sua mais célebre definição: “o blues é um homem bom se sentindo mal”. A fossa afetiva carrega a voz de Baco para campos mais suaves em “Queima Minha Pele”, “Girassóis de Van Gogh” e na sarcástica “Me Desculpa Jay Z”, que foi curtida por Beyoncé no Instagram de Baco.
Ao oscilar entre os pleitos afetivo e o político-social, o cantor exibe suas cicatrizes, chagas e feridas e aceita a possibilidade de ser crucificado diante do conservadorismo que se esgueira nas vielas do poder.