Ele encarnou o romântico, o cronista, o malandro, o trovador contra a ditadura, o boleiro... Ao longo das últimas cinco décadas, Chico Buarque de Hollanda, que completou 75 anos na última quarta-feira (19), descreveu a história brasileira em músicas e textos para teatro – são dezenas de discos lançados, milhões de álbuns vendidos e peças como “Roda Viva” (1967), “Calabar” (1973) e “Ópera do Malandro” (1978).
Quando o assunto é literatura, Chico também está entre os grandes: publicou cinco romances - “Estorvo” (1991”, “Benjamim” (1995), “Budapeste” (2003), “Leite Derramado” (2009) e “O Irmão Alemão” (2014). Ele venceu o Prêmio Jabuti, o mais tradicional do país, três vezes e, em maio, foi agraciado com o Prêmio Camões 2019, um dos maiores reconhecimentos da literatura em língua portuguesa.
Um dos personagens mais geniais da história brasileira do século XX em diante, Chico Buarque tentou – e ainda tenta – entender essa contradição chamada Brasil.
“Quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina, salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta
Morta de cansaço”
“Tatuagem” (1973)
“Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu”
“Pedaço de Mim” (1978)
“Viva Erasmo, Ben, Roberto
Gil e Hermeto, palmas para
Todos os instrumentistas
Salve Edu, Bituca, Nara
Gal, Bethania, Rita, Clara
Evoé, jovens à vista”
“Paratodos” (1993)
“O segundo me chegou
Como quem chega do bar:
Trouxe um litro de aguardente
Tão amarga de tragar.
Indagou o meu passado
E cheirou minha comida.
Vasculhou minha gaveta;
Me chamava de perdida”
“Teresinha” (1979)
“Quando eu choro é uma enchente surpreendendo o verão
É o inverno, de repente, inundando o sertão
Quando eu amo eu devoro todo meu coração
Eu odeio, eu adoro numa mesma oração”
“Baioque” (1972)
“Eu quero te contar
Das chuvas que apanhei
Das noites que varei
No escuro a te buscar
Eu quero te mostrar
As marcas que ganhei
Nas lutas contra o rei
Nas discussões com Deus
E agora que cheguei
Eu quero a recompensa
Eu quero a prenda imensa
Dos carinhos teus”
“Sem Fantasia” (1968)
“Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno”
“Cálice” (1978)
“Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde”
“Trocando em Miúdos” (1978)
“Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir”
“Eu Te Amo” (1980)
“Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria
Quero que você me assista na mais fina companhia
Se você sentir saudade, por favor, não dê na vista
Bate palma com vontade, faz de conta que é turista”
“Quem Te Viu, Quem Te Vê” (1967)
“Muita careta pra engolir a transação
E a gente tá engolindo cada sapo no caminho
E a gente vai se amando que também sem um carinho
Ninguém segura esse rojão”
“Meu Caro Amigo” (1976)
“O meu amor tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos, viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo, ri do meu umbigo
E me crava os dentes”
“O Meu Amor” (1978)
“Construção” - um caso à parte
A maior canção de Chico Buarque e uma das mais grandiosas da música popular brasileira. “Construção”, quarta faixa do disco homônimo, é um samba paradoxal da glória e da desgraça do trabalhador sem nome, com orquestra, tons de suspense e 6m24s de uma peça épica. Verdadeira construção, arquitetura maravilhosa, a última palavra de todos os versos é sempre proparoxítona: tímido, último, bêbado, sábado, pródigo, máquina, lágrima… Mas não só isso: Chico faz um jogo de palavras em que ora o sujeito senta para descansar como se fosse sábado, ora como se fosse um príncipe, ora como se fosse um pássaro, e as palavras vão se misturando criando um caos lindíssimo. “Construção” é absurdamente genial e engenhosa. Sufoca e atordoa.
“E tropeçou no céu como se fosse um bêbado/ E flutuou no ar como se fosse um pássaro/ E se acabou no chão feito um pacote flácido/ Agonizou no meio do passeio público/ Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego”