No romance “Madame Bovary”, publicado em 1857 por Gustave Flaubert, o escritor francês narra que mulheres que gargalhavam em público eram malvistas, afinal essa exposição de prazer soava obscena. Em “Os Contos de Canterbury”, lançado no Brasil em 1972, o diretor italiano Pier Paolo Pasolini filma uma cena insólita: um casal transa dentro de uma igreja para que a mulher apenas cumpra o papel reprodutivo, sem alcançar o gozo. 

Um ano antes, em 1971, o Brasil ainda vivia sob o domínio de uma ditadura militar quando Gal Costa tornou-se a primeira mulher a cantar, com sucesso de dimensões nacionais, a palavra “sexo” na música brasileira. “Pérola Negra”, de Luiz Melodia, era uma das faixas do icônico álbum “Fa-Tal: Gal a Todo Vapor” – paradigma do movimento tropicalista – e trazia em seu refrão o trecho “tente entender tudo mais sobre o sexo”. 

Decorridos décadas e séculos dos acontecimentos descritos, o prazer da mulher, especialmente o sexual, parece ainda ocupar o lugar de tabu na prateleira dos costumes, mas há quem insista em mudar o curso dessa história. São os casos de Karol Conka, Iza, Tulipa Ruiz, Flaira Ferro, Vanessa da Mata, Letrux, Iara Rennó e outras compositoras de uma cena ampla e diversa, que ultrapassaram o mero papel de intérpretes a que artistas de gerações anteriores estiveram relegadas. 

Quando Carmen Miranda brincou com o duplo sentido na carnavalesca “Eu Dei”, de 1937, ela teve que se valer dos versos de Ary Barroso. O mesmo aconteceu com a cantora portuguesa Vera Lúcia, primeira intérprete da lânguida e sensual “Amendoim Torradinho”, obra de Henrique Beltrão lançada por ela em 1955, e que depois ganhou as vozes de Ney Matogrosso, Angela Maria, Alcione, Dóris Monteiro e Ivon Curi. O fato ainda era comum no ano em que Maria Bethânia gravou “O Meu Amor”, de Chico Buarque, em 1978. 

“As mulheres hoje trocam muito mais, fazem letras umas para as outras, são parceiras, praticam a sororidade. Quando a mulher compõe, ela está sentindo com muito mais propriedade aquilo que cabe no desejo dela. Uma música do Chico Buarque, por mais bonita que seja, não é o discurso feminino, não dá conta de chegar a esse lugar”, conceitua Claudia Assef, crítica musical e autora dos livros “Todo DJ Já Sambou” (2003) e “Ondas Tropicais” (2017), biografia da DJ Sonia Abreu. 

Outra mudança aparece na linguagem. As metáforas utilizadas por Rita Lee, Angela Ro Ro, Joyce, Fátima Guedes, Marina Lima e Paula Toller nos anos 80 foram substituídas por expressões que não deixam dúvida sobre seu sentido. “Teta”, “clitóris”, “orgasmo”, “lambida”, “excita” e “goza” tornaram-se “palavras de ordem”, e são cada vez mais recorrentes. “São músicas que fazem parte de uma linha artística mais panfletária, a gente vive um momento em que os discursos estão mais escancarados, porque a realidade também está. Mas é preciso dizer que há uma diversidade, a abordagem não é única nem existe uma relação estanque com essa temática”, defende Olívia Mindêlo, que escreve para a revista “Continente”. 

Idealizadora do projeto musical “Feminino”, que promoveu encontros no palco entre Elza Soares e Pitty; Tiê e Badi Assad; e Fernanda Abreu e Iza; a produtora Débora Ribeiro corrobora a tese. “É um movimento libertário, porque o tabu gera atrocidades, e as novas gerações tratam a sexualidade de uma forma que a mulher não é mais só o objeto do desejo, mas é ela quem deseja e se sente livre para fazer o que quiser como ser humano”, aponta. 

Por outro lado, o crítico e pesquisador musical Rodrigo Faour vê exatamente na escolha do vocabulário um risco para a permanência dessas canções. “É ótimo que a mulher assuma seu desejo sexual cada vez mais, já não era sem tempo. É um assunto que está na pauta do dia, mas eu não acho que o discurso deve prevalecer sobre outros critérios artísticos. Não é porque você tem uma bandeira que, necessariamente, é um grande artista. Vejo muitas coisas malfeitinhas que são endeusadas só pelo lado politizado”, analisa. Autor do livro “História Sexual da MPB” (2006), ele aproveita a deixa para incensar outros tempos. “Espero que a linguagem figurada volte a ter seu valor, perdemos a capacidade de interpretar texto. Tem gente que confunde ‘um tapinha não dói’ com violência, mas é uma fantasia sexual, e ainda não percebe as ironias de ‘Mulheres de Atenas’, um clássico do Chico Buarque”, observa.

 

Toda a irreverência da pioneira Rita Lee

Nelson Motta considerava a letra de “Perigosa” pronta quando a levou para Rita Lee e Roberto de Carvalho procurando uma melodia. Mal sabia ele que três palavras acrescentadas por Rita transformariam a canção por completo. Foi sugestão da compositora que, após o verso final “eu vou fazer você ficar louco”, a música continuasse com mais libido. “Dentro de mim” era o grito de liberdade e ousadia dado pelas vocalistas do grupo Frenéticas, que lançou esse sucesso da disco music em 1977.

“Rita Lee foi pioneira em tudo desde Os Mutantes, quando ela se fantasiava de noiva grávida, na década de 60, e aparecia em contracapa de disco com dois homens na cama”, sublinha o crítico musical Rodrigo Faour, em alusão à foto do álbum “A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado”, gravado pela trupe psicodélica em 1970. O ensejo serve para Faour traçar qualidades exclusivas da autora de “Ovelha Negra”.

“Rita sempre foi contra o estabelecido, mas de uma maneira irreverente, crítica e autocrítica. Ela nunca levou muito a sério essas questões partidárias e o radicalismo que havia nos dois polos. A música ‘Cor de Rosa-Choque’ é uma obra-prima, mas a Rita tomou muita porrada das feministas na época, porque tinha muita brincadeira no discurso dela”, dimensiona o entrevistado. Crítica musical, Claudia Assef coloca outras canções em relevo. “As músicas ‘Mania de Você’ e ‘Lança-Perfume’ falam, basicamente, sobre transas”, afirma.

 

Funk levou discurso explícito

Na linha evolutiva da música sexual brasileira, é possível dizer que, entre Rita Lee e Karol Conka, o funk de Tati Quebra-Barraco, Deize Tigrona e Valesca Popozuda se impôs como ponto nevrálgico. No começo dos anos 2000, Tati foi a responsável por entoar os versos “se eles quer que você mame/ manda eles te chupar”, invertendo a lógica estabelecida pelo universo machista. “As primeiras mulheres a falarem explicitamente de seus desejos sexuais são as do funk. Só que o gênero era marginalizado”, indica a crítica musical Claudia Assef. Jornalista da revista “Continente”, Olívia Mindêlo problematiza a questão por outro prisma. “A gente não deve ser moralista quando fala da manifestação das mulheres da periferia. Há uma tendência a objetificar o corpo, mas algumas se sentem empoderadas”, diz.

Valesca Popozuda, intérprete de “Quero Te Dar”, fala de sua experiência. “A liberdade feminina sempre existiu, só que era medrosa. Eu quis libertar as mulheres. Por que não falar do nosso órgão genital?”, questiona. O pesquisador Rodrigo Faour afiança a perspectiva. “Essas cantoras sabiam que estavam provocando, mas nunca formularam teses”, diz.

 

Clipes tirados da rede

Apesar dos avanços, a conquista por espaço caminha modestamente. Uma prova são os casos de censura. O clipe de “Lalá”, da rapper curitibana Karol Conka, soma, hoje, mais de 6 milhões de visualizações. Colocado na rede em junho de 2017, ele despertou reações que culminaram com sua retirada do YouTube. “Isso não me abala, só prova que o prazer da mulher é um tabu, é como se vagina e prazer não combinassem. É importante falarmos sobre o assunto para mantermos as pessoas informadas e evitar decepções. Imagine que leve seria o mundo se todas gozassem de verdade”, sugere Karol.

Para compor a música, ela afirma ter se inspirado em vivências pessoais e histórias de amigas que tiveram más experiências ao receber sexo oral. Enquanto entoa os versos “moleque mimado bolado que agora chora/ só porque eu mandei ajoelhar/ fazer um lalá por várias horas”, homens ajoelhados têm as respectivas cabeças levadas para frente. Noutro momento, a própria rapper imita com a mão o órgão sexual feminino e repete os movimentos de língua descritos. O alto número de denúncias foi usado como justificativa para tirar o vídeo do ar, decisão já revista.

O mesmo aconteceu com Flaira Ferro. Cantora, compositora e dançarina, a recifense causou furor na internet ao lançar, em março, o clipe “Coisa Mais Bonita”, que, além de tratar da sexualidade feminina, mostrava mulheres se masturbando. Retirado da rede no dia seguinte à publicação, o vídeo retornou, com restrição de idade, graças a uma campanha que agregou fãs e pessoas sensíveis à causa. Com letra e música de Flaira, a canção diz: “Toda mulher que se toca/ Instiga a autoestima/ Estimula o botão/ Mesmo que o mundo se choque/ O clitóris é antídoto pra morte”.

“O prazer feminino é um aspecto muito reprimido, uma mulher que goza incomoda porque historicamente fomos projetadas para a cultura da dor, estimuladas desde cedo a aguentar e ouvir que a mulher suporta o parto, a cólica, a menstruação e as violências”, complementa a artista pernambucana.