ENTREVISTA

Cris Peter, a Mulher-Maravilha das cores 

"É certo que durante muitos anos, os quadrinhos não eram tidos como coisa de menina. As revistas têm medo de mudar o padrão", diz a artista gaúcha

Dom, 15/11/15 - 03h00
"Mulheres não são incentivadas a ler as HQs", diz a colorista e quadrinista gaúcha Cris Peter | Foto: Bruno Todeschini
A artista gaúcha, convidada do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), trabalhou com a DC e a Marvel, sendo a única brasileira indicada para o Will Eisner, o mais importante prêmio da indústria internacional de quadrinhos. Na entrevista, ela comenta sobre a evolução das HQs no Brasil e nos EUA, novas formas de produção e o machismo persistente em grandes revistas.
 
 
Muita gente acha que quem está envolvido com quadrinhos faz tudo sozinho, desenha, colore, faz o roteiro. Como você escolheu a profissão de colorista?
 
É verdade. Nos EUA, existe uma noção bem mais definida sobre o trabalho de cada um – até porque eles têm dezenas de publicações por mês. Eu sempre gostei de colorir. Na verdade, comecei a desenhar criança porque minha mãe não podia comprar um monte de livros para colorir – e eu só queria desenhos em branco para preencher de cores. Quando descobri que existi a profissão de colorista, já sabia o que queria.
 
 
Desde quando você se inseriu no universo dos quadrinhos, há mais de 15 anos, quais as principais evoluções notadas nesse cenário? O quadrinho ficou mais acessível?
 
Eu comecei desenhando como fã, por paixão mesmo. Na minha época, se alguém falasse de um mercado organizado de quadrinhos nacional, eu diria que isso era praticamente impossível. Até os anos 2000 era um consenso de que o mercado brasileiro de quadrinhos simplesmente não existia. O principal marco é a questão da internet, que trouxe tanto o acesso fácil a outros artistas como a liberdade de publicar tudo o que eles quiserem online. Além disso, a reformulação de projetos no Brasil também é importante. Como os quadrinhos da Turma da Mônica, do Maurício de Souza – ele começou a adaptar personagens clássicos com convidados, a partir dos traços de outros quadrinistas não conhecidos pelo público. Isso acabou mostrando para o leitor brasileiro que a gente tem uma produção que não é só volumosa, ela é de uma qualidade absurda, com muito talento e know-how nesse mercado.
 
A partir da sua experiência no exterior, qual a comparação entre os mercados brasileiro e o norte-americano?
 
A maioria da minha produção de trabalho é para o mercado internacional de quadrinhos. Nos Estados Unidos dá para notar principalmente uma diferença cultural. Para eles, as HQs estão enraizadas muito por causa da Segunda Guerra Mundial, quando surgiram personagens como o Capitão América para amplificar discursos políticos ante a crise financeira. Usaram muitos quadrinhos para criar uma verdadeira cultura de leitura. Eles têm muitos títulos mensais e o dinheiro circula. As editoras conseguem produzir, conseguem pagar os artistas bem. Essa é a maior diferença para o mercado brasileiro. Aqui no Brasil produzimos bastante coisa, mas muitas editoras têm medo de investir em tiragens maiores e muitos quadrinistas têm que trabalhar com outras coisas, paralelamente ao desenho e à arte – que é movida por paixão.
 
Como única brasileira indicada ao Prêmio Will Eisner, o maior da indústria internacional de quadrinhos, você acredita que outros brasileiros podem chegar lá em breve e até conquistar o prêmio?
 
Com certeza. Eu fui indicada pela coloração do livro “Casanova: Avaritia e Casanova: Gula”, de Matt Fraction, com desenhos de Gabriel Bá e Fábio Moon. E isso é para mostrar que muita gente achou que tinha ganhado o maior prêmio de quadrinhos do mundo com algum desenho. Não é bem assim. No Brasil, ainda temos que difundir os diversos trabalhos que as pessoas fazem no mundo das HQs – roteiro, coloração, desenho, finalização. Por que temos centenas de nomes nacionais capazes em diversas áreas. Só precisam ter mercado e visibilidade para não só concorrer de igual para igual, mas também para ganhar.
 
 
As feiras gráficas e os grandes festivais, como o FIQ, anualmente revelam produções caseiras de HQs de alta qualidade. Como você enxerga a relação entre as produções independentes e o papel das editoras nesse novo cenário?
 
Eu acredito que, na questão da distribuição e da logística, ainda precisamos muito das editoras. O que vem acontecendo muito são as parcerias. O quadrinista produz e coloca no financiamento coletivo o valor referente à produção. Às vezes, se o financiamento coletivo extrapola a meta, é possível usar a grana restante para investir numa tiragem maior de livros. Isso pode ser feito em parceria com as editoras para fazer a distribuição de algo que tem demanda e está prontinho para o mercado. Recentemente eu fiz a coloração do livro “Pétalas”, em parceria com o Gustavo Borges, sendo que esse financiamento coletivo quase ‘quebrou’ o Catarse – batendo recorde de arrecadação na plataforma. Aquilo foi um recado claro para o mercado de que, sim, temos potencial, temos público, temos um produto mais do que bem acabado. Mas, por outro lado, eu ainda acho que as editoras poderiam aumentar consideravelmente a porcentagem de direito autoral para os autores – a média de faturação do criador de uma obra é de 10%. As grades livrarias levam 50% e às vezes 60% do lucro. É uma coisa que está meio emperrada no mercado brasileiro.
 
 
Você trabalhou em obras como “Superman”, “Batman”, “Capitão América”, para empresas como DC e Marvel. E recentemente alguns super-heróis e super-heroínas começaram a ter padrões masculinos ou machistas questionados. Ainda há muita resistência de grandes revistas em quebrar esses estereótipos sobre a figura da mulher?
 
Em primeiro lugar, a gente tem um problema cultural a respeito do papel do gênero – essa velha discussão do que é coisa de menino e menina. E isso não se resume ao Brasil, acontece no mundo todo. No caso das HQs, é certo que durante muitos anos os quadrinhos não eram tidos como coisa de menina. Não fomos incentivadas a ler HQs, ao contrário da maioria dos meninos, claro. Aqui no Brasil temos até um cenário diferente por causa da Turma da Mônica, que atinge tanto meninos como meninas. Mas até a Turma da Mônica acaba para quem atinge uma idade X. A solução para isso é a mulher estar no mercado. A maneira de representar bem a figura feminina nos quadrinhos é colocando mais mulheres para trabalhar em quadrinhos – e elas ainda são muito poucas em grandes empresas, não chega a 20% de um mercado dominado por homens. E uma coisa vai chamando a outra. Vai ter mais mulher lendo e depois querendo ser quadrinista. Não existe outro caminho. Até porque os homens realmente resistem a algumas questões.
 
 
Como o que, por exemplo?
 
Os editores, por exemplo, ainda têm uma certa resistência ao determinar que a cor da capa do Superman tem que ser neste tom de vermelho absoluto – não pode mudar. E existem editores que determinam que a Mulher-Maravilha tem que ter decotão – porque ela é desenhada assim há décadas e ponto final. A verdade é que as revistas de HQ têm medo de mudar o padrão e perder leitor. Só que é um risco que eles vão ter que correr, porque o mangá, por exemplo, é um meio que tem muitas leitoras e que tem atraído mais as mulheres, pela forma mais real como elas são retratadas. De alguma maneira, as revistas de HQ vão ter que se reformular. Aconteceu recentemente com a personagem da Bat Girl. Ela teve um uniforme mais ‘usável’ para uma super heroína, não usa salto alto, tem um cabelo preso e uma capa bem mais curta para não atrapalhar na ação. Nada de figurino sexual, com uma visão machista da mulher. Esse é o caminho que temos que seguir.
 

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