Letras de canções como “Capítulo 4, Versículo 3”, “Diário de um Detento” e “Mágico de Oz”, que impulsionaram o disco “Sobrevivendo no Inferno” (1997) ao status de obra-prima dos Racionais MC’s, atingindo vários estratos sociais e tornando-se sucesso de público – cerca de 1,5 milhão de cópias vendidas – e crítica, hoje são leitura obrigatória para o vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) 2020.
Para auxiliar aqueles que querem ingressar na universidade, a Companhia das Letras lançou recentemente, no ano em que os Racionais completam três décadas, um livro (144 páginas) batizado com o mesmo nome daquele clássico do rap nacional e que traz o conteúdo das letras das 12 faixas que o integram.
Um dos responsáveis pela iniciativa, Ricardo Teperman, editor da Companhia das Letras, convidou Acauam Silvério de Oliveira, 37, professor de literatura brasileira na Universidade de Pernambuco (UPE), para escrever um prefácio da obra, intitulado “O Evangelho Marginal dos Racionais MC’s”.
“Ele (Teperman) já conhecia meu trabalho, os Racionais eram meu objeto de estudo do doutorado que fiz na USP em 2010”, sintetiza Acauam.
No texto, ele remonta o contexto histórico brasileiro da época em que o álbum foi lançado – incluindo o massacre do Carandiru, que serviu de inspiração para “Diário de um Detento” –, traça um pouco do perfil do grupo paulista – formado por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay – e ressalta o poder das letras das músicas, cujas temáticas transitam entre os problemas enfrentados por moradores de favelas e periferias, o racismo e a religiosidade. “Tem uma coisa no rap que é diferente dos outros estilos musicais. O rap é um modo de vida, que enfrenta problemas reais. O título ‘Sobrevivendo no Inferno’ é uma metáfora ao mesmo tempo que não é. As letras não abordam mera ficção”, exalta.
Destaques. Ele lista suas letras favoritas do disco. “Tem várias, mas se fosse para destacar três, ‘Diário de um Detento’ estaria presente. É a música central do álbum. Ela traz o massacre do Carandiru, marcado pelo genocídio, uma realização de um projeto do Estado brasileiro da época. Eu também destacaria ‘Capítulo 4, Versículo 3’, uma reflexão política e estética fundamental e que traz uma complexidade de narrativas, com vários personagens na música, cada um representando um indivíduo da sociedade. ‘Fórmula Mágica da Paz’ fecha a trinca principal do disco”, aponta.
Para o professor, a inclusão das letras das músicas – que culminaram neste livro – como leitura para o vestibular pode ser considerado um grande feito para os Racionais, mas, acima de tudo, aos estudantes.
“A academia como um todo ganha com isso. Os assuntos que os Racionais discutiam em 1997 são bem atuais. Muita coisa não foi compreendida ou assimilada. E é importante até para aqueles que ainda não conheciam os Racionais estar por dentro dessas letras. Elas seguem atemporais no contexto político e social atual”, opina o professor.
Além da questão do vestibular, Acauam espera que a obra impressa também incite o pensamento crítico das pessoas. “Quem acha que bandido bom é bandido morto deveria ouvir e ler ‘Diário de um Detento’. Acho que o futuro dos Racionais e do rap sempre será de resistência e de conscientizar as pessoas”, afirma.
Lançamento. Na época do lançamento do livro, no mês passado, Acauam teve um feedback dos Racionais: “O Edi Rock estava presente e falou que gostou muito do texto. A esposa do Mano Brown, a Eliane Dias, conversou comigo e elogiou bastante também”.
Curiosidades. O segundo disco dos Racionais teve “Diário de um Detento” como carro-chefe. A música angariou os prêmios de melhor clipe de rap e clipe do ano pela audiência do prêmio VMB da MTV Brasil de 1998. Em 2015, o então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, presenteou o Papa Francisco com uma edição do disco.
No patamar de Beatles e Floyd
O livro “Sobrevivendo no Inferno” possui um aspecto de Bíblia, tanto por conta da icônica capa com a cruz, a mesma do disco, quanto pelo brilho dourado das páginas quando a obra está fechada. Além disso, as letras seguem uma ordem cronológica, similar a uma missa, como atenta Acauam de Oliveira.
“No disco (e no livro) existe um rigor de uma construção estética. A introdução com ‘Jorge da Capadócia’ (Jorge Ben Jor), há a faixa ‘Gênesis’, que é um ‘Gênesis marginal’. Depois vem um pregador em ‘Capítulo 4, Versículo 3’, que explica ou confunde os sentidos da palavra divina. Há em seguida os testemunhos de almas que perderam para o diabo, um momento para velar mortes, o ápice com ‘Diário de um Detento’ e indo em direção a um momento de autorreflexão no fim do álbum”, diz.
“Eu colocaria esse disco lado a lado com ‘Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band’ (1967), dos Beatles, e ‘The Dark Side of the Moon’ (1973), do Pink Floyd, em função dessa disciplina estrutural, mas “Sobrevivendo” tem uma implicação política mais fundamental e mais real”, completa.
Reconhecimento na cena do rap nacional
Em 30 anos, os Racionais cunharam quatro discos no currículo – “Raio X Brasil” (1993), “Sobrevivendo no Inferno” (1997), “Nada Como Um Dia após o Outro Dia” (2002) e “Cores & Valores” (2014) –, além de dois EPs – “Holocausto Urbano” (1990) e “Escolha o Seu Caminho” (1992) –, cujas letras influenciaram a cena do rap nacional.
“Os Racionais foram o primeiro grupo de rap que escutei. Eu pensava: ‘Será que um dia vou conhecê-los?’. E tive o prazer de abrir alguns shows do grupo uns anos atrás. Foi incrível. O público não estava acostumado a ver uma mulher no palco abrindo o show dos Racionais. Certa vez, uns caras estavam me incomodando, mas continuei cantando e disse: ‘Quem não está feliz com minha presença que se retire. Quem me convidou foram os Racionais’. Aí eles ficaram quietos e entenderam. Deixaram a ignorância de lado”, comentou a rapper Karol Conka.
Criolo, por sua vez, ressaltou o papel de Mano Brown na música. “Ele foi importante para toda uma geração. Retratou como poucos a nossa realidade”, sintetizou o cantor. (TP/Raphael Vidigal)
Trechos
“Homem é homem, mulher é mulher/ Estuprador é diferente, né?/ Toma soco toda hora, ajoelha e beija os pés/ E sangra até morrer na rua 10/ Cada detento uma mãe, uma crença/ Cada crime uma sentença/ Cada sentença um motivo, uma história de lágrima, sangue, vidas e glórias/ Abandono, miséria, ódio, sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo/ Misture bem essa química/ Pronto: eis um novo detento”
“Diário de um Detento”
“Irmão, o demônio f*** tudo ao seu redor/ Pelo rádio, jornal, revista e outdoor/ Te oferece dinheiro/ Conversa com calma/ Contamina seu caráter/ Rouba sua alma/ Depois te joga na merda sozinho/ Transforma um preto tipo A num neguinho/ Minha palavra alivia sua dor/ Ilumina minha alma/ Louvado seja o meu senhor/ Que não deixa o mano aqui desandar/ E nem sentar o dedo em nenhum pilantra”
“Capítulo 4. Versículo 3”