Mostra SP

De diva para divas 

Leandra Leal estreia na direção honrando a arte de ser mulher em “Divinas Divas”

Ter, 01/11/16 - 02h00

SÃO PAULO. Durante a ditadura, na década de 1970, quando era proibido que homens se vestissem de mulher, Américo Leal, diretor do teatro Rival, no Rio de Janeiro, foi o primeiro a abrir seu palco para a apresentação de travestis e transformistas. Três décadas depois, quando o espaço completou 70 anos, em 2004, sua filha, Ângela Leal, convidou oito dessas divas que fizeram história ali para um espetáculo comemorativo.

O show foi a oportunidade para Leandra Leal, que conviveu nesse universo e viu essas apresentações desde criança, se reaproximar dessas mulheres e suas histórias. “Quando vi as oito no palco de novo, achei muito forte e entendi que havia uma história ali que só eu poderia contar, não me gabando, mas por questão de conhecimento, ligação e intimidade com elas”, explica a atriz e diretora.

A prova disso é o documentário “Divinas Divas”, exibido na 40ª Mostra de Cinema de São Paulo. O filme resgata a trajetória dessas oito artistas – ícones como Rogéria, Jane Di Castro, Camille K., Fujika de Halliday, Marquesa e Eloína dos Leopardos – a partir do ponto de vista de Leandra, que revela nessa jornada parte da sua história e da de sua família. É um equilíbrio delicado e que poderia ter resvalado na autoindulgência. Mas que a atriz, em sua estreia na direção, encaminha com segurança e usa para inserir o público naquele universo com os mesmos afeto e fascinação que ela sente por ele.

“Tudo ali era muito natural para mim. Minha preocupação em fazer o filme era provocar no espectador esse olhar de naturalidade e quebrar preconceitos que as pessoas possam ter”, descreve. Esse olhar metafórico ganha uma representação literal no longa, com vários momentos do espetáculo sendo filmados de um lugar bem específico. “O ponto de vista dos bastidores. A câmera mostra o show dali, logo no primeiro plano, porque é uma visão que eu tinha quando criança. Vi muito show no Rival daquele lugar”, revela.

Mas por mais que seja um testemunho pessoal sobre sua formação artística e familiar – Leandra cita como referência o excelente documentário pessoal “Histórias que Contamos”, da também atriz Sarah Polley – “Divas” pertence as suas protagonistas. O filme é o retrato de oito artistas que fizeram de sua vida um espetáculo. Numa época em que “transexual”, “ideologia” e “identidade de gênero” eram termos inexistentes ou inimagináveis, essas mulheres levaram sua arte, suas personas, do palco para o dia a dia como forma de afirmação e sobrevivência.

“Quando você tem tempo de viver o suficiente, sua vida acaba sendo uma obra de arte. E eu acredito que a vida delas é o espetáculo da coragem de ser quem você é”, resume a diretora. E a partir das mais de 400 horas que filmou desde 2009, o que levou dois anos e meio de montagem, Leandra resgata o enorme sucesso que as oito obtiveram nos palcos, dentro e fora do Brasil, mas revela também a mulher por trás das divas: o desafio de vestir na pele seu gênero no país que mais assassina travestis e transexuais no mundo.

“Foi uma dificuldade quebrar um pouco essas máscaras, dar conta dessa percepção mais humana”, admite a atriz e cineasta. Mas ainda que elas contem casos de violência, internação forçada e preconceito na tela, “Divas” não pretende ser uma discussão sobre identidade de gênero e homofobia – e, sim, um registro delicioso de artistas interpretando Edith Piaf e Bethânia, compartilhando a sabedoria e celebrando o amor proporcionados pela coragem e pela beleza únicas de ser mulher.

“Por mais que eu saiba que uma travesti que escolhe ser enfermeira ou professora ainda é muito difícil, isso também foi uma escolha delas de vida. Queria muito que o público visse além da questão de gênero. Elas fizeram uma escolha de não se vitimizar, são bem-humoradas, se consideram vencedoras. A Jane fala isso, ‘eu venci’”, argumenta Leandra. E ela acredita que celebrar essa vitória não serve apenas de exemplo, mas tem seu valor político. “Colocar a Jane casada hoje há mais de 40 anos é uma afirmação política muito maior que qualquer discurso”, afirma.

Tabu. E além da identidade sexual, “Divas” trata de outro tabu solenemente ignorado no Brasil: a velhice. “É muito contraditório, porque elas estavam na ditadura, quando era proibido se vestir de mulher, e tinham mais espaço para se apresentar que hoje. Existia uma curiosidade, um glamour que não existe mais”, considera a diretora. Diva que é diva, porém, nunca perde o brilho, e uma delas cita a Norma Desmond de “Crepúsculo dos Deuses”, afirmando que “estrelas não envelhecem”, ao que outra responde “não fico velha, acumulo juventude”.

É essa determinação, essa disciplina e essa paixão pela arte, que Leandra afirma ter sido um dos pilares de sua formação como atriz. Divina Valéria cantando “My Way” em espanhol no fim do documentário, “Mi Modo”, afirmando “sé que estoy en paz porque viví a mi maneira” com um talento e uma emoção inigualáveis, sintetiza toda a graça e a coragem necessárias para ser assim, tão divina. E é isso que a cineasta queria registrar em seu longa. “Não são artistas travestis. São artistas. O filme é sobre oito artistas. A arte é muito libertária, permite que elas sejam quem são. E elas são muito talentosas, foram bem-sucedidas na história delas”, celebra.

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