Literatura

Diversidade posta em xeque

Boicote à obra de autora paulistana acende discussão sobre ensino da cultura africana em escolas, previsto por lei federal desde 2003, mas que ainda caminha lentamente nas instituições de ensino

Por Laura Maria
Publicado em 03 de abril de 2018 | 03:00
 
 
Boicote à obra de Kiusam de Oliveira levante debate sobre ensino Mazza Edições/divulgação

A formação da identidade brasileira passa, essencialmente, pela confluência entre os povos europeus (majoritariamente portugueses), indígenas e africanos. Mas, por mais que a miscigenação seja uma marca nacional, o estudo das culturas indígenas e, principalmente, africanas ainda é defasado nas escolas. “É grave pensar em até que ponto os conteúdos passados na escola contemplam a diversidade da sociedade. Do mesmo modo que a cultura africana é rechaçada, a indígena também é”, avalia o bibliotecário Vagner Amaro, proprietário da Editora Malê, especializada na produção literária afro-brasileira.

A fala de Amaro diz respeito à repercussão de um comunicado do Sesi de Volta Redonda (SP), redigido em março, que informava aos pais sobre a substituição do livro “Omo-Oba: Histórias de Princesas” (Mazza Edições, 2009), da escritora Kiusam de Oliveira, por outro título. Na nota, a instituição alega que recebeu “um questionamento dos pais em relação ao conteúdo do livro paradidático”. Depois de uma manifestação contrária promovida pela mãe de um dos alunos, porém, o Sesi voltou atrás na decisão em remover o livro da bibliografia escolar e pediu desculpas.

“Omo-oba: Histórias de Princesas” reconta mitos africanos, como a história de Oiá, Oxum e Iemanjá, por meio de seis princesas. Em postagem em seu perfil no Facebook, Kiusam afirmou que “o livro apresenta seis histórias de rainhas, na figura de princesas, com o objetivo de fortalecer a personalidade de meninas, independente de raça/cor, etnia e condições socioeconômicas”.

A postagem continua, destacando que “tais rainhas são nossas ancestrais, uma vez que há comprovações científicas de que África é o berço da humanidade. A forma com que eu as apresento neste livro é sem nenhuma conotação religiosa, mergulhadas que estão na história e nos aspectos da cultura afro-brasileira, através de uma narrativa com personagens negras cheias de afeto e de empoderamento, o que é uma raridade em bibliotecas brasileiras”, fala.

Na opinião da empresária Maria Mazzarello, à frente da Mazza Edições – editora responsável pela publicação de “Omo-oba: Histórias de Princesas” – não se “pode colocar em um mesmo pacote literatura e religião”. “Fundamentalistas religiosos carregam muito a mão ao interferirem em questões como a educação”, argumenta.

Ensino defendido por lei. As decisões sobre o ensino da cultura africana, entretanto, não ficam a cargo das instituições de ensino: esse tipo de conteúdo tornou-se obrigatório na grade curricular de escolas públicas e privadas brasileiras graças à Lei 10.639, instituída em 2003 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O texto ainda estabelece a permanência da comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar.

Por mais que a lei exista há mais de dez anos, a implantação dela ainda é deficitária, segundo avalia Maria. Ela diz que apenas 30% das escolas mineiras aplicam-na corretamente. “A lei estabelece estudos de questões afro, mas dos mais de 20 Estados brasileiros, apenas dez seguem-na como está escrito no texto. Dos mais de 800 municípios mineiros, apenas 30% seguem-na corretamente. Até mesmo em Belo Horizonte essa temática aparece apenas no dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra)”, destaca.

Segundo Amaro, a lei ainda não é cumprida como deveria porque encontra muita resistência na escola e dos próprios pais. “Se pensarmos na representação que a mídia e até as artes fizeram da cultura afro-brasileira, é possível entender essa resistência. A cultura negra esteve, muitas vezes, representada relacionada à feitiçaria e à demonização. Isso foi transmitido como uma verdade. Ainda serão necessárias muitas atitudes como a da mãe que divulgou o boicote da escola e de professores e pais que difundem a história e cultura afro-brasileira, para que a maioria das pessoas entenda como a cultura afro-brasileira constitui nossa vida, nossas relações e o nosso modo de ser”, avalia.

FOTO: Mazza Edições/divulgação