Ionete da Silveira Gama avisa de cara que vem trazendo um “banzeiro” a Belo Horizonte – “aquela agitação das águas que faz o barco virar, é assim que chamamos no Pará”. Aos 76 anos, com uma carreira que não soma duas décadas, a cantora, compositora e poeta paraense parece estar apenas começando. Principal referência do “carimbó chamegado”, Dona Onete tem levado o gênero do Norte brasileiro, com paixão e ardência, como ela diz, do eixo Rio-São Paulo até a Malásia – numa exportação nunca antes vista de suas próprias raízes.

Mesmo com problemas nos quadris que dificultam sua agitação dos tempos de menina levada pelas fazendas de Marajó, o show que essa senhora-criança traz ao Sesc Palladium, hoje à noite, acompanhada de ninguém menos que Otto e Fafá de Belém, promete ser puro “remelexo” – no próprio vocabulário particular dela, que faz questão de esclarecer a cada expressão corriqueira: “Você sabe o que é remelexo, certo?”.

Dona Onete escreve seus versos há mais de 35 anos. Todos embriagados de Reginaldo Rossi e Waldick Soriano até o último fio de cabelo. E, apesar de ter sido descoberta pelo Coletivo Rádio Cipó apenas em 2000, ganhando microfones e palcos, ela não se considera revelação artística. Se enquadra mais no time de Dona Ivone Lara, trabalhadora comum, despertada sem pressa pela arte.

“Eu fui professora de história de primeira à quinta série por 24 anos. E, numa época, dava aulas e logo depois ia aos bares cantar, dançar, beijar na boca, que é coisa boa. O artista é a pessoa comum que faz o Brasil todo dia. A poesia é a riqueza de perceber o dia a dia, nada mais”, avisa.

Não à toa, Dona Onete é uma enciclopédia cultural do Pará. Com muita ardência, que fique claro. Até hoje, compôs nada menos do que 350 canções, muitas delas escritas para artistas como a franco-brasileira Lia Sophia, a brasiliense Emília Monteiro e até a pop Gaby Amarantos.

Em suas letras, Dona Onete trata na palma da mão referências regionais como as ilhas de Marajó, os botos cor de rosa que jurava ver na beirada dos rios, mulheres de lua, as chamadas manhosas, fogo subindo por debaixo de saias e por aí vai: temperos para histórias de paixão e quentura – ela diz ter vivido boa parte do que está cantando.

Em “Proposta Indecente”, ela admite que escreveu os versos “eu sei tudo que você gosta / aceita a proposta / basta só dizer sim” para tentar conquista o único cavalheiro que não tentava se aproximar dela nos shows. “Eu me separei depois de 25 anos casada com um macho ciumento demais. Vivi muitas coisas, e esse caso real foi mais uma brincadeira porque eu gostava dos homens aos meus pés. Mas muitas letras também são inspiradas em amigas, gente conhecida da noite, além de sempre ter o Pará no meio”, diz.

Do jambu, folha paraense que tem particularidade de provocar dormência, ela teve inspiração para o hit “Jamburana”, que chegou às festas do Rio de Janeiro neste ano com a maliciosa letra: “vai descendo, vai descendo / vem subindo, vem subindo (...) a boca fica muito louca”. “Fiquei feliz porque essa música estava tocando numa festa em homenagem ao Cazuza no Circo Voador e também em outras baladas em Botafogo, no Rio. Acho que estou chegando na capital fluminense e as pessoas conhecendo o Pará, assim como o Grupo Raiz do Cafezal tocou na Malásia em 2013 porque os incentivei”, diz a artista, em referência à primeira banda paraense instrumental a tocar no Rain Forest Wold Music Festival naquele país.

SHOW. De batom, flor na cabelo e saia rodada, figurino colorido e tradicional de seus shows, Dona Onete faz uma mistura atraente entre carimbó, samba, merengue, lambada e guitarrada, presente no repertório de “Feitiço Caboclo” (2012), seu primeiro disco. No próximo álbum, a ser lançado neste ano pela Natura Musical, ela insere com mais vitalidade o banguê – um ritmo do interior de Igarapé-Mirim, cidade marcante na vida da artista, conhecida como a capital mundial do açaí. Tudo isso deve ser diluído no palco, com Fafá de Belém e Otto interpretando as canções da paraense. “A Fafá já cantou comigo muito a ‘Jamburana’, desta vez deve ficar com o Otto, que ainda não teve chance de interpretar. Mas os dois adoram minha obra, como eu adoro a deles. Não precisamos de ensaio, é só juntar tudo no palco”, diz Dona Onete.

Agenda

O QUE. Dona Onete convida Otto e Fafá de Belém

ONDE. Sesc Palladium (rua Rio de Janeiro, 1.046, centro)

QUANDO. Hoje, às 21h

QUANTO. Os ingressos, trocados por 1 kg de alimento não perecível para o Programa Mesa Brasil Sesc, estão esgotados.