RIO DE JANEIRO " No final da fresca tarde outonal de quintafeira, Chico Buarque entrou dirigindo um Vectra Elite branco nos jardins da gravadora Biscoito Fino, ao pé do casarão plantado numa ladeira em Humaitá, de cuja varanda se descortina o Redentor.

Magro, de blusa azul, calça social cinza, sapatos de couro e meias pretos, ele sobe um lance de escadas e dá um oi geral para o grupo de jornalistas de todo o país que o esperam. O ar é festivo, amálgama da idolatria dos fãs e faro profissional dirigido ao novo disco.

"Carioca", que chega às lojas oito anos depois de "As Cidades", traz 12 canções, sendo dez inéditas. Sai em duas versões, finamente editadas pela Biscoito Fino, gravadora brasileira em que Chico estréia ao fim de uma história antiga, e nem sempre amistosa, com as multinacionais do disco.

Há o CD avulso ou encartado com o DVD "Desconstrução", documento bem elaborado dirigido pelo jovem Bruno Natal que expõe os bastidores da gravação e torna o ouvinte mais íntimo da obra laborada ao longo de meses por Chico e sua equipe comandada, de longa data, pelo maestro, produtor e violonista Luiz Cláudio Ramos.

Estava na hora, ele diz, de falar diretamente do Rio e para o Rio de Janeiro, de homenagear a cidade cuja ruína parece não ter fim.

"Subúrbio", a última música a ser composta e a entrar no disco é um choro-canção que conclama a periferia " Penha, Irajá, Realengo, Piedade... " a revelar o que a indesejada das gentes remediadas ainda consegue criar, apesar da barra pesada.

"Traz as cabrochas e a roda de samba/ Dança teu funk, o rock,/ forró, pagode, reggae/ Teu hip-hop/ Fala a língua do rap/ Desbanca a outra/ A tal que abusa/ De ser tão maravilhosa", canta.

Mas por que a hora é essa" "Antigamente ser carioca era motivo de orgulho. Agora não é mais. E talvez por isso seja um bom momento para me afirmar carioca", Chico disse recentemente à "Revista" de "O Globo", ao listar as mazelas da metrópole: "Os políticos do Rio são os piores do Brasil. A cidade está degradada, a classe média apavorada com a favela. Do subúrbio, só se fala quando há chacina...".

Sem falar nas várias evocações musicais e imagens oblíquas, Chico considera que há referências mais diretas ao Rio em "Leve", parceria com Carlinhos Vergueiro apresentada como misto de bolero e samba-canção e que enumera logradouros cariocas, um quiosque de praia, o planetário, o cais do porto, o paço, e em "Imagina", a valsa composta por Tom Jobim em 1947 a que Chico deu letra quase 40 anos depois, gravada com Mônica Salmaso.

Essa música que fecha o disco satisfez uma velha e adiada expectativa do compositor em gravá-la.

Simetrias
"Carioca", CD aberto com "Subúrbio", a que se segue o meio xote meio foxtrote "Outros Sonhos", na categorização do jornalista Hugo Sukman em texto para imprensa, lança uma simetria direta com "As Cidades", que trazia de cara o samba "Carioca" e "Sonhos Sonhos São", ou num conceito ou idéia plantado lá e desenvolvido aqui.

Chico diz que não quis confundir ninguém, que não houve propósito, apenas coincidência nisso.

Coincidência ou não, e concede que tanto o escritor como o compositor forjado dentro do jovem estudante de arquitetura e urbanismo que ele foi, revela(m), em seus três romances e sobretudo nos dois últimos discos, um sensível interesse pelos temas da cidade e do sonho, ou talvez por cidades de sonhos.

Tanto nas tramas de "Estorvo", "Benjamim" e "Budapeste" como nas melodias das canções há rastros do mesmo autor-geógrafo, ou do inventor de melodias erguendo ruas e casas em plantas oníricas.

"Há (o interesse) por cidades, sim. Tanto na música que você fala ("Sonhos Sonhos São") e sobretudo nos romances há cidades que se misturam com sonhos, cidades criadas. Budapeste é uma cidade criada no livro. Eu nunca estive em Budapeste, a não ser depois de escrever o livro. Então é uma cidade inventada, uma língua quase inventada. Mas também no "Estorvo" e em parte no "Benjamim" não há uma visão realista do Rio de Janeiro. Mas o Rio presente no disco é uma cidade mais real do que o Rio na minha literatura; há uma atmosfera do Rio, há passeios pela cidade neste disco."

Escrever romances e fazer músicas são atividades que Chico Buarque consegue, hoje, aproximar e relacionar num convívio fértil, depois de tentar entendêlas como entidades autônomas, de universos paralelos.

"Antes, quando comecei a me dedicar à literatura, imaginava que o compositor permanecia adormecido. Agora tenho a impressão de que não, que enquanto estou escrevendo, o compositor fica fazendo ginástica, está se preparando". A literatura, como Chico a concebe, estimula sua escrita musical e vice-versa.

"São como dois autores e um mexe com o outro. Sempre tive a impressão de que minha literatura deve muito à música. Quando falo música, não é a parte literária da canção, a letra, é a música própria, é a prática musical. Agora vejo que o contrário também acontece, a minha música deve alguma coisa à literatura. O que é preciso distinguir no fazer literário é a escrita do romance, da escrita da música. A letra de música tem muito pouco a ver com literatura", reflete, e aduz: "Quanto eu termino de escrever um livro tenho que me despojar da linguagem literária para buscar outra linguagem que é a linguagem das letras da música popular.".

Quando entrou no estúdio, havia apenas três ou quadro canções esboçadas, mas, por prática e intuição, sabia que o disco iria se completar. Chico revela que a convivência com os músicos em estúdio é altamente estimulante para o trabalho de compor novas músicas.

Assim "Carioca" foi tomando forma. Ele regravou "Ode aos Ratos", parceria com Edu Lobo que havia cantado na trilha do musical "Cambaio", de Adriana e João Falcão.

Aqui, ele agregou ao baião um acompanhamento mais atual, com células rítmicas trabalhadas por Marcos Suzano, além da "Embolada" que fora concebida como rap e que entra no contracanto.

"Aprendi o suficiente sobre rap para sentir que não tenho jeito para a coisa. Daí ter escrito embolada". "Carioca" reúne ainda o samba "Dura na Queda", feita para Elza Soares e gravada pela sambista.

"As Atrizes", canção sobre reminiscências do adolescente encantado com as belas do cinema e "Renata Maria", com Ivan Lins", surgiram durante as gravações da série de programas para TV e agora lançados como DVDs, concebidos por Roberto de Oliveira.

Disco é uma espécie de jubileu

Se você pode gastar um pouquinho mais, prefira CD e DVD juntos. As duas peças tornam a fruição de "Carioca" uma experiência mais aguda e justa. "Carioca" é uma espécie de jubileu do reinado de Chico na nossa canção popular.

Suas melodias já não são tão fáceis de assobiar sem duas ou três audições das faixas, enfeixadas em harmonias mais trabalhadas e emolduradas em arranjos sóbrios e elegantes de Luiz Cláudio Ramos, que recrutou a fina flor dos instrumentistas do Rio de Janeiro.

Quem for direto ao encarte de letras, encontrará logo uma série de imagens antitéticas que dão a Buarque uma insuperável maestria: "Com um pé atrás/ Com um pé afim", em "As Atrizes", ou "Quando ela chora/ Não sei se é dos olhos para fora", da bossa nova "Ela Faz Cinema", ou, ainda, "Quando ela já não mais garota/ Der a meia-volta/ Claro que não vou estar mais nem aí", em que a delícia da nuance do ser e estar festeja nosso idioma.

O verso fecha "Bolero Blues", a letra feita para a música algo tortuosa de Jorge Helder, para surpresa, emoção e lágrimas do baixista, como se vê na marcante passagem de "Desconstrução".

No DVD, Chico revelará aos povos que suas músicas sempre foram compradas de encomenda, desta vez de um certo Ahmed. Veja para crer. Ramos fala da criação dos arranjos, da escolha dos músicos. Acompanhamos o trabalho do engenheiro de som brincando com o software Pro-Tools, uma maravilha nos estúdios modernos.

É divertido acompanhar a convivência alegre de Chico com seus músicos em estúdio, os ensaios, experimentos fracassados, pedaços de letra refeitos depois de submetidos à apreciação do grupo. É maio, e um novo disco de Chico Buarque está na praça. Brinde à efeméride desta instituição nacional. Festeje. Se alegre. 

AGENDA " "Carioca" - Disco nas lojas a partir de hoje em duas versões: avulso e em CD com DVD. Os preços variam de R$ 35 a R$ 58.