Crítica

'Eu Sou Mulher, Eu Sou Feliz' se equilibra entre o discurso e a poesia

Com 16 canções compostas por Ana Costa e Zélia Duncan, projeto reúne Alcione, Elba Ramalho, Simone e outras

Por Raphael Vidigal
Publicado em 10 de dezembro de 2019 | 03:00
 
 
Ana Costa e Zélia Duncan criaram 16 canções em parceria no álbum que tem as presenças de Alcione, Elba Ramalho, Simone e outras Jorge Bispo/Divulgação

Zélia Duncan, 55, e Ana Costa, 51, se reuniram para compor, e o resultado foi um projeto com 16 canções. Assumidamente monotemático, o disco que acaba de ser lançado é farto na quantidade de faixas e convidadas, ao mesmo tempo em que almeja diversificar os pontos de vista sobre a condição da mulher na sociedade brasileira contemporânea. “Eu Sou Mulher, Eu Sou Feliz” tem forma, pinta e jeito de manifesto, fato que o coloca sob o risco da panfletagem. Nada que, por si só, seja desabonador.

Grandes obras nasceram com esse estigma, como “Opinião”, de Zé Kéti, e “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”, eterno sucesso de Geraldo Vandré. Como naquele tempo de repressão institucionalizada, Zélia e Ana deixam clara a necessidade de se posicionarem diante de um cenário de violência contra a mulher, endossado, muitas vezes, por representantes eleitos pelo povo. Com essa pauta mais do que legítima em mãos, as soluções musicais encontradas para catapultar o discurso variam e aparecem inconstantes.

Um dos bons artifícios escolhidos pela dupla foi criar canções que se adaptam ao estilo das intérpretes. Ou seja, Alcione controla com retidão o samba “Uma Mulher”, assim como Elba Ramalho se sente à vontade na toada “Sou a Lua do Sertão”. A recorrente autoafirmação é o que, por vezes, emperra a fruição da obra.

A frase “Eu Sou Mulher, Eu Sou Feliz”, que dá título ao álbum e surge cantada por Simone, corrobora a impressão da espécie de carta de intenções declamada na abertura do disco. Ali, as convidadas espelham as suas dores e alegrias e são determinativas. “Toda mulher é potência, possibilidade de vida e transformação”, dizem num trecho. “Lida do Amor”, interpretada por Leila Pinheiro, se destaca pela cuíca ao fundo e pela presença de uma melancolia poética.

“Saias e Cor”, em tom flamenco, recebe o canto quente de Isabella Taviani e o cavaquinho preciso de Nilze Carvalho. A canção é dona de melodia arrebatadora, que não se coaduna com a simplicidade quase oca da letra, escorada em palavras de ordem como “Cuidado com esse gesto aí/ Vai te ferir/ Não deixa machucar assim/ Teu coração”. A leveza entra em cena com “Deixa Comigo”, um dos pontos mais altos, graças à habilidade de Joyce Moreno, que sabe conduzir, como poucas, esse samba de bossa. A questão central do trabalho é apreciada com graça, sem perder a relevância. “Fazendo um biscate aqui e ali/ Eu vou me equilibrando/ (...) Se pra você tá esquisito/ Então, imagina pra quem nasceu mulher nesse lugar”, canta Joyce.

“Sou Nascente”, com Daniela Mercury e Lan Lan, conta com a força das percussões, o que não é suficiente para tirá-la do segundo plano no conjunto da obra. “Brilham ao Escurecer” dá voz ao lamento jazz de Áurea Martins. O clima de samba-canção se instala, e o discurso volta a ficar ralo, ainda que invista na ironia.

“O Milagre” apresenta Fabiana Cozza em ótima forma vocal, que dá conta de elevar os versos ao nível de sua beleza: “Me escondi, sem notar/ Tantos olhos não me sobra um olhar/ Mesmo assim vou ficar/ Sou o mundo, sou a rua, sou aqui”. O orgulho negro também é exaltado.

“Sabemos Ver” tem Cida Moreira com a habitual categoria e sua rouquidão expressiva, cantando a solidão feminina. “Entre Olhos” é animado e rítmico dueto de Lucina e Júlia Vargas, num “duelo” pelos mesmos direitos. “Antes Só” repete a dose, mas como samba das irmãs Maíra Freitas e Mart’nália. “Voltei pra Mim” urde reflexões íntimas e existenciais sob a delicadeza de Fernanda Takai e Nath Rodrigues. “Não é Não”, com Teresa Cristina e Marina Iris, é tão direta que sacrifica a poesia. “Nascer Mulher”, ao contrário, investe no mormaço da voz de Mônica Salmaso para tocar a realidade.