Entrevista

História viva de Ouro Preto

Rosana Marreco Brescia, pesquisadora e musicista

Dom, 19/03/17 - 03h00

Com pesquisa de doutorado sobre casas da ópera construídas na América Portuguesa, ela fala da retomada da programação do Teatro Municipal de Ouro Preto, reaberto depois de um período extenso fechado para reforma. Inaugurado em 6 de junho de 1770, o espaço é o mais antigo existente no mundo luso-brasileiro e era um dos poucos lugares de sociabilidade fora do âmbito religioso

O teatro foi reaberto depois de ficar dois anos e meio fechado para obras. Por que é importante que ele volte às atividades?

O teatro é um equipamento fundamental para os artistas e para o público de Ouro Preto, faz parte da memória coletiva da cidade. Não é só um edifício antigo, mas tem uma função que se adaptou aos novos tempos e que nunca deixou de existir. É uma parte preciosa da história teatral e cultural brasileira que nós temos a obrigação de salvaguardar e projetar para as gerações futuras.

A Casa da Ópera é considerado o mais antigo teatro em funcionamento das Américas?

O teatro foi inaugurado no dia 6 de junho de 1770, dia do aniversário do então rei de Portugal, D. José I. Mas é importante lembrar que esse não foi o primeiro teatro permanente construído na antiga Vila Rica. Há documentos relativos a um teatro que funcionou ainda na primeira metade do século XVIII, cuja atividade foi interrompida em 1751. O Brasil conta ainda com dois importantes teatros dos tempos coloniais, o Teatro Arthur Azevedo, de São Luiz do Maranhão (1815) e o Teatro Municipal de Sabará (1819). Contudo a Casa da Ópera de Ouro Preto é o único teatro setecentista ainda preservado e em atividade, sendo ainda mais antigo que o principal teatro de Lisboa ainda existente, o Teatro São Carlos, inaugurado em 1793.

Por que ele foi construído?

Os teatros públicos no século XVIII desempenhavam um papel fundamental na vida social e política da sociedade. No caso de Vila Rica, o teatro era um dos poucos lugares de sociabilidade fora do âmbito religioso, onde as personalidades mais importantes da cidade poderiam dividir o mesmo teto com as pessoas comuns. Os ingressos eram pagos, mas os preços variavam significativamente. Aos espectadores ilustres eram reservados os camarotes, e as pessoas de menor prestígio social ficavam na plateia. Há relatos de viajantes que dizem que a plateia era ocupada por pessoas de capotes, um tipo de vestimenta muito mal-visto pela sociedade da época. Os escravos dos “figurões” também assistiam às representações do último andar de camarotes, já que eles tinham que esperar pelos senhores para escoltá-los de volta casa. Ou seja, a Casa da Ópera era um microcosmo da sociedade setecentista. Também é importante lembrar que os teatros públicos, apesar de não contarem com subsídios do governo (a Casa da Ópera de Ouro Preto era um bem particular do rico coronel João de Souza Lisboa), eram amplamente incentivados pela Coroa, que os considerava uma “escola pública onde os povos aprendem as máximas mais sãs da política, da moral, do amor à pátria, do valor, zelo e fidelidade com que devem servir seus soberanos”. Ou seja, o teatro não só era um meio de entretenimento, como também um poderoso instrumento de afirmação do poder régio no ultramar.

A construção do teatro tem relação com a época em que a capital de Minas era Ouro Preto?

É claro que o teatro de Vila Rica era um edifício significativo por estar na capital, mas também havia importantes teatros em Sabará, São João del Rei, Paracatu e também no antigo Arraial do Tejuco.

O teatro carrega em sua construção ricos detalhes do Barroco. Qual é a importância de se conservar essa parte da história mineira?

Tão fascinante como ter em Minas Gerais um edifício teatral de quase 250 anos é saber que ele tem uma atividade quase ininterrupta – salvo pelos momentos em que esteve fechado para obras de restauração ou manutenção. O teatro continua em funcionamento porque os artistas e o público de Ouro Preto assim o querem, porque ele faz parte do imaginário de quem mora lá, faz parte da história dos artistas que se formaram lá. Ao contrário de outros teatros do Brasil, que são equipamentos públicos e têm uma atividade programada pela autarquia local – que também têm o seu valor –, o teatro de Ouro Preto sempre funcionou porque os artistas da cidade não o deixaram morrer, com ou sem o apoio da prefeitura. O teatro passou por um momento difícil na década de 1830 devido a um problema que envolvia os herdeiros do coronel Souza Lisboa e que se arrastava por anos. Foi um grupo de artistas da cidade, a União Dramática Ouropretana, que lutou por décadas para conseguir os fundos para restaurá-lo e acabou conseguindo.

Em qual contexto histórico e social se encontrava Ouro Preto quando o teatro foi construído?

Vila Rica em 1770 contava com uma sociedade muito diversificada, havia um grande número de intelectuais, quase todos bacharéis pela Universidade de Coimbra, que estavam no auge de sua produção literária. Os artistas e artífices, cuja maioria absoluta era composta por mulatos e negros, apesar de não terem tanta mobilidade, estavam perfeitamente conscientes das inovações estéticas produzidas no Velho Continente. É notório o talento dos músicos provenientes da capitania de Minas Gerais. A capitania passava por um momento de grave crise econômica devido à diminuição nas jazidas de ouro, mas é precisamente em momentos de crise que se produziram algumas das mais importantes obras de arte da humanidade, e, em Minas Gerais, não foi diferente. Alguns dos nossos melhores compositores estiveram em atividade precisamente no último quartel do século XVIII e princípios do século XIX.

O teatro foi criado em forma de lira. Por que ele foi construído assim?

O teatro segue o modelo dos teatros públicos construídos em Portugal ao longo do século XVIII, conhecidos como teatros-corredores. Ao contrário dos teatros italianos, os teatros portugueses eram muito mais compridos, porque aproveitavam o máximo dos terrenos onde eram construídos. O formato de lira era muito utilizado nos teatros de raiz italiana, que eram ou em ferradura, ou em “U”, ou em lira. Contudo, a aclimatação do modelo italiano às condições disponíveis em Portugal e, por conseguinte, em suas colônias, fez com que o formato de lira não fosse tão utilizado como nos teatros italianos. Não é uma solução única, mas é pouco habitual nos teatros públicos luso-brasileiros.

O teatro é reconhecido pela boa estrutura acústica. Enquanto cantora lírica, você concorda com essa afirmação? Por quê?

A acústica da Casa da Ópera é realmente fantástica. São vários os fatores que contribuem para tal, como a forma contracurvada da sala, os revestimentos em madeira, a leve inclinação do palco em direção ao fosso – que também está relacionada com a cenografia então utilizada. Enfim, é importante lembrar que, ainda que não saibamos quem foi o autor do projeto, foi sem dúvida alguém que conhecia perfeitamente os tratados de arquitetura teatral impressos na Europa ao longo dos séculos XVII e XVIII.

Quais eram os tipos de apresentação mais comuns quando foi inaugurado?

Como diz o nome, era uma Casa da Ópera, contudo o que os homens daquele tempo chamavam de “ópera” era algo ligeiramente diferente do que conhecemos hoje já que o texto musical era muito mais livre.

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