Entrevista

Luiz Tatit: “A prisão de Lula parece parte de um jogo sinistro”

Músico fala sobre a volta do grupo Rumo depois de três décadas com “Universo

Por Raphael Vidigal
Publicado em 26 de maio de 2019 | 03:00
 
 
Músico, linguista e professor universitário, Luiz Tatit foi um dos fundadores do grupo Rumo no final da década de 70 Gal Oppido/Divulgação

Fundador do histórico grupo Rumo, um dos ícones na década de 80 da chamada Vanguarda Paulista, o múltiplo artista Luiz Tatit, músico, linguista e professor universitário, fala ao Magazine sobre “Universo”, primeiro disco de inéditas do conjunto em 30 anos; comenta os pontos de encontro entre a criação e a análise em sua obra, elogia a ascensão do rap na música popular brasileira e opina sobre o atual panorama político do país. 

O que mudou e o que permaneceu no Grupo Rumo em relação ao primeiro disco, de 1981, para este de agora, em 2019?

O Rumo do primeiro disco tinha alcançado um estilo próprio dentro de um experimentalismo cancional, não propriamente musical, e registrou esse momento. O Rumo de agora já partiu de um estilo totalmente consolidado, como se não tivesse havido um hiato de quase 40 anos entre o primeiro e o último disco. O experimentalismo daqueles tempos já aparece integrado em cada composição e arranjo sem necessidade de sublinhá-lo.

O que levou vocês a gravar um novo disco juntos depois de quase três décadas de separação?

A proposta concreta do produtor musical Márcio Arantes, em parceria com o Sesc. Como nunca nos separamos do ponto de vista da amizade, nem mesmo do ponto de vista geográfico, pois todos moramos em São Paulo, o retorno para um trabalho em grupo só dependia de um patrocínio e de alguém que comprasse a ideia e tivesse paciência de administrar as etapas de composição, ensaio e gravação de nove integrantes que têm suas próprias carreiras ou exercem outras profissões.

A música “Universo”, que batiza o disco, repete certa tradição metalinguística do conjunto. Por que ela foi escolhida para título do álbum?

Do ponto de vista pragmático, era a canção que mais oferecia elementos ao projeto visual do álbum, em relação a capa, encarte e cenário. O tema ia do “único e especial” ao “tudo que é universal”. Do ponto de vista da história da banda, essa era uma das canções que, por volta de 1993, já estava composta para o repertório do então provável novo disco do Rumo. Mas foi aí que interrompemos a atividade por força das condições materiais de cada componente, ninguém podia viver dos parcos rendimentos do grupo. Retomar o trabalho por “Universo”, nesse momento em que nossas vidas pessoais já estão definidas, é como se não tivesse havido esse intervalo de décadas entre as duas fases.

O que a música “Toque o Tambor” tem a dizer sobre os dias atuais?

Eu mesmo reconheço que essa canção, inspirada nos tambores obsessivamente tocados por parte da nova geração de estudantes que frequentam o campus da USP, onde eu faço minha caminhada diária, depois de pronta, em janeiro de 2018, acabou retratando também o impacto até agora deletério da nova ordem política. Tocar o tambor, na canção, significa “não parar”. Daí a pergunta contundente: “então por que parou?”. Enfim, o governo passa, mas o país continua no vigor que o brasileiro manifesta quando empunha as baquetas de um tambor. 

Como tem visto o avanço do conservadorismo no país? 

Bem, o conservadorismo atual é outro tema que dependeria de uma entrevista especial. Começa com a eleição do (Donald) Trump nos Estados Unidos, com o Brexit no Reino Unido e chega até nós na última eleição. A humanidade caminha com dois passos para frente e um para trás. Sempre foi assim. Como são “dois” para frente e apenas “um” para trás, é fácil notar que há um progresso que vai se consolidando. Quando regride, recomendo que todos toquem o tambor. O tempo passa mais rápido. 

“Dengo” e “Estaca” são as canções que mais me impressionaram no novo trabalho. Como foi o processo de composição delas?

Na canção, a palavra ou a letra, como chamamos, depende intensamente da melodia. Em ambas as canções que você menciona, recebi, da Ná e do Paulo, respectivamente, as melodias prontas. “Dengo” já trazia a sua “denguice” na melodia insinuante da Ná. A maneira de dizer, a manha e a gestualidade já estavam ali. Claro que cheguei a esse tema específico porque sou, a esta altura da vida, bastante treinado a captar esses gestos melódicos e convertê-los em letra. Mas te garanto que o dengo já estava na melodia. O mesmo posso dizer de “Estaca”. A contundência da melodia do Paulo, com aquele acompanhamento que parecia golpes de caratê, me levou à ideia de “bater estaca”, algo que já se dizia para criticar um gênero musical que tocava no rádio, e, a partir disso, comecei a explorar também a aliteração dos fonemas “est” que me levaram a outras palavras possuidoras desse som. Mas havia também uma melodia mais romantizada se contrapondo ao bate-estaca, que eu aproveitei para criar a narrativa amorosa que dá coerência à faixa como um todo. Essas melodias que possuem um caráter especial bem definido são até mais fáceis para o letrista do que aquelas habituais, ligadas a um gênero prévio, como samba, rock, reggae, etc.

Qual a principal qualidade da Ná Ozzetti enquanto cantora?

A Ná é uma das maiores cantoras que o Brasil já teve em todos os tempos. Para a nossa felicidade, sua carreira também iniciou-se no Rumo. Sua vivência na banda por mais de uma década fez com que ela desenvolvesse uma dicção raríssima entre nossas cantoras, aliás, abandonada desde Carmen Miranda. A Ná tem a agilidade rítmica da Elis Regina, a extensão vocal da Gal Costa, um timbre de voz lindíssimo e, além de tudo, sabe “dizer” o que canta, como só se viu anteriormente em Carmen Miranda.

Qual a principal contribuição do Rumo para a música brasileira?

O Rumo mostrou, na prática, que toda canção é um “modo de dizer” e que isso é o centro dessa linguagem. O arranjo e a instrumentação, em geral, sempre estiveram a serviço desse núcleo de sentido. O aspecto entoativo que há por trás de toda melodia cancional também foi uma revelação trazida pelo Rumo. As decorrências desse modo de ver a canção entraram definitivamente no pensamento atual sobre esse tema. A explicitação dessa consciência nas canções foi o gesto vanguardista do Rumo nos anos 70 e 80, quando o parâmetro novidade gozava de plena hegemonia.

Você afirma que a sua obra é marcada por “uma certa dificuldade com a vida”. Como isso se dá?

Muitos compositores veem na canção um lugar estético privilegiado, em que os conflitos se acham resolvidos justamente pela beleza melódica e pelo lirismo típico dessa linguagem. Ou seja, se existe tristeza, ela deve ir embora e dar lugar ao momento de catarse trazido pela música. Compositores imensos, como Dorival Caymmi ou Jorge Ben Jor, foram mestres dessa tomada de posição. As canções são delicadas e servem para alegrar. Tenho dificuldade de trabalhar assim. Talvez eu carregue certo excesso de ironia que não me permite fazer letras sem conflitos internos, nem que sejam apenas aludidos, mas é claro que há exceções. 

Como enxerga o processo de criação?

O aprendizado de criação é quase sempre artesanal, incluindo nesse termo até mesmo os recursos eletrônicos. O artista observa seus ídolos e faz daquilo que percebe um verdadeiro exercício para produzir os seus próprios trabalhos. Aos poucos, o que era pura imitação vai adquirindo personalidade e estilo até chegar ao desbravamento de um campo específico de criação. Isso não faz do artista um conhecedor da “gramática” da sua linguagem. Uso a palavra gramática porque, na nossa linguagem cotidiana, também acontece isso. Somos todos falantes totalmente habilitados do português, nos expressamos nessa língua e, no entanto, poucos de nós se dedicam a compreender a gramática que regula naturalmente a nossa fala. Deixamos essa tarefa aos linguistas. No caso da canção, é a mesma coisa. Muita gente, hoje em dia, se interessa em estudar a gramática da canção, aquela que, entre outras coisas, incide sobre a relação entre melodia e letra. Com esse estudo, o interessado pode aprender a analisar qualquer canção, mas isso não significa que estará apto a compor. Falta-lhe o exercício que falamos acima. O compositor também, raramente, se propõe a analisar canções, pelo fato de saber fazê-las. Aliás, é por isso que quando se pergunta aos autores sobre suas criações, eles preferem falar de sua vida pessoal, de fatos externos que teriam levado àquela composição e não das composições propriamente ditas. A criação e a análise constituem práticas diferentes. Ambas demandam dedicação específica.

Enxerga algum traço de religiosidade no processo criativo? Acredita em Deus? 

Acho que a criação, como disse, vem do exercício de unir melodia e letra. Nada tem a ver diretamente com religiosidade. Não acredito em Deus.

Quem são os seus ídolos musicais? 

Meus ídolos são os mesmos de todos. Chico, Gil, Caetano, Djavan, Rita Lee, Jorge Ben Jor, João Gilberto, Arnaldo Antunes, para ficarmos só nos ainda vivos. Mas há muitos outros.

Com a síntese do criador, qual é a diferença entre música e canção?

Música é sempre organização do universo sonoro de uma cultura. Canção é a relação entre melodia e letra no interior desse mesmo universo. 

Qual o melhor verso da canção brasileira?

Um dos melhores versos, a meu ver, é de Alice Ruiz, numa parceria com o Itamar Assumpção: “a cada mil lágrimas sai um milagre”.

O que significou para você a homenagem que a Zélia Duncan prestou com o espetáculo “Totatiando”, em 2013? 

A Zélia me surpreendeu com esse espetáculo, a meu ver, brilhante, concebido por ela e pela atriz e diretora Regina Braga. Foi talvez o maior presente artístico que recebi. Em geral, essas homenagens ocorrem postumamente. É muito bom poder recebê-las em vida e em atividade. A Zélia sempre me pareceu surpreendente, no melhor sentido do termo. De suas interpretações impecáveis no espetáculo a que mais me tocou foi “Sem Destino”.

Tem planos de colocar na praça outros discos solo? 

Ainda não sei, mas assim que formar um novo repertório, imagino que vou partir para outro álbum. Mas isso ainda me parece distante. O Rumo sempre foi e é a banda da minha vida, mas confesso que para o trabalho musical diário prefiro pensar em shows como os que faço sozinho ou em dupla. Sinto que as canções passam com mais clareza, um pouco pela qualidade sonora das execuções menos tumultuadas.

Qual lembrança você tem da Ciça Tuccori, integrante original do grupo Rumo? 

No ano anterior à morte da Ciça, ela chegou a participar, muito animada, de um show especial do Rumo apresentado no teatro do Sesi. Infelizmente ela foi vítima de câncer e faleceu em 2001. 

Como enxerga a ascendência do rap nacional?

O rap é uma canção radical na medida em que apresenta uma oralização quase pura. Se não existisse, precisaria ser inventado. Sempre houve grande interesse pelas canções que roçam a fala cotidiana, pois são as mais talhadas para veicular conteúdos extracancionais. Por isso, os raps atraem manifestos, pronunciamentos, declarações, reivindicações etc. É uma arma política que convida o ouvinte a debater temas da atualidade ou mesmo da condição humana. Já praticávamos isso com alguns tipos de samba, como o de breque, por exemplo, mas faltava uma canção de intervenção mais incisiva que veio com o rap.

O que pensa sobre o atual cenário político do país?

Esse tema faz a gente repetir clichês infinitamente. Prefiro fazer alusão a uma frase do Guimarães Rosa, no conto “A Terceira Margem do Rio”, dita no momento em que a família do “pai” se dá conta que o personagem tinha tomado uma decisão realmente insólita: viver para sempre singrando pelas águas do rio numa simples canoa. O narrador expressa o absurdo dessa situação inesperada com a frase extremamente sintética: “aquilo que não havia, acontecia”. Esta é a sensação que eu tenho: algo que a esta altura parecia impossível acontecer está acontecendo, para pesadelo de todos que achávamos que nossa trajetória seria sempre para frente, ainda que aos trancos e barrancos. É como se voltássemos à estaca zero e o Brasil, pela eterna carência financeira, tem dificuldade de recuperar coisas destruídas. Certamente a Catedral de Notre Dame será restaurada muito antes que o nosso Museu Nacional. Parece-me a mesma coisa, o estrago pode demorar muito para ser desfeito.

Qual a sua opinião sobre a situação do ex-presidente Lula? 

A situação do ex-presidente Lula envolve questões judiciais que não me sinto em condições de avaliar com alguma precisão. De modo bem genérico, e sem conhecimento de causa, concordo com os que rejeitam a pena de prisão para quem não oferece perigo físico à sociedade. Muitos presos estão nessa condição. A justiça poderia se concentrar em reaver o dinheiro público, quando o caso for de nítida corrupção, e em aplicar penas alternativas. A prisão de uma figura que teve a relevância política do Lula parece fazer parte de um jogo sinistro que vem causando o pesadelo que mencionei atrás. Mas esse é um tema sobre o qual só posso, neste momento, apresentar uma impressão superficial. 

Ouça “Universo”, o novo disco do grupo Rumo: