Literatura

Milton Hatoum comenta sua trilogia e critica abandono da Amazônia

Autor amazonense é homenageado pela 13ª edição do Festival de Literatura de São João del Rei e Tiradentes

Qua, 18/09/19 - 03h00
Milton Hatoum conta que sua trilogia tem relação com o atual momento do país | Foto: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo

Há três décadas, Milton Hatoum fez sua estreia com o romance “Relato de um Certo Oriente”, com o qual ganhou o Jabuti de melhor romance. Os dois trabalhos que saíram em sequência, “Dois Irmãos” (2000) e “Cinzas do Norte” (2005), também lhe renderam o mesmo prêmio, consagrando o autor – nascido em Manaus (AM) e radicado em São Paulo desde a década de 90 – entre os mais importantes da literatura brasileira contemporânea. 

Em 2017, ele publicou “Noite de Espera”, que é o primeiro de uma trilogia cujo próximo volume, “Contos de Fuga”, é aguardado para sair em novembro. Homenageado pela 13ª edição do Festival de Literatura de São João del Rei e Tiradentes (Felit), a ser realizado de quarta (18) a domingo (22), o autor, na entrevista a seguir, comenta a continuação do seu projeto mais recente e critica a intensificação do abandono da Amazônia no atual governo. 

A trilogia iniciada com “Noite de Espera” constitui um romance de formação, que é atravessado pelo período da ditadura no Brasil. Como você percebe os possíveis diálogos entre essa narrativa e os dias atuais?

Eu acho que o segundo volume, “Contos de Fuga”, tem até maior relação com o que está acontecendo agora, em que presenciamos um retrocesso enorme. Claro que eu não escrevi essa história pensando nisso. Eu estou trabalhando nesses três volumes desde 2007. Eu noto que os conflitos, a brutalidade, a censura, que eram muito diretos na época da ditadura, estão voltando, ainda que de uma forma mais ou menos velada. O autoritarismo está muito presente neste momento, e eu acho que muito leitores têm percebido essa relação entre o presente e os meus livros, o que foi totalmente involuntário. Eu nem poderia pensar que o Brasil fosse passar por tamanho retrocesso.

Você vem se dedicando a esse projeto há mais de uma década. A composição dessa trilogia tem te exigido mais do que suas obras anteriores?

Na verdade, não, porque eu encontro dificuldades até mesmo para escrever uma crônica. Não escrevo com rapidez, meu ritmo para ler é muito mais veloz. O que sempre me dá trabalho é armar a estrutura do livro. Isso aconteceu com “Cinzas do Norte” e com “Relato de um Certo Oriente”. Mas, enfim, essa trilogia, na verdade, será um romance de 800 páginas, e estabelecer o ponto de vista do narrador, dos personagens, é algo que dá muito trabalho. Eu venho penando nesse trabalho desde 1980. Houve uma tentativa lá atrás de escrevê-lo, quando eu morava na Espanha, mas eu acabei adiando. Nesse intervalo, eu escrevi “Cinzas do Norte”, que tem algum parentesco com essa trilogia, e agora eu me meti nessa aventura. Tem um pouco de ousadia e de risco, e eu acho que vale a pena assumir os riscos, assim como também recuar diante de um projeto que está dentro de você. Eu pensei esse romance (dividido em uma trilogia) como uma espécie de acerto de contas comigo mesmo, com minha própria experiência e, enfim, tem um pouco da minha vida, mas eu acho que tudo ali foi mesmo construído, inventado e imaginado.

Você ressaltou as conexões entre “Cinzas do Norte” com a trilogia. Um dos pontos de contato entre eles são os personagens dessas histórias?

Acho que essa aproximação se dá mesmo pelo pano de fundo, que é a ditadura. Mas a trilogia não é ambientada no Amazonas, embora tenha personagens dessa região. Além disso, no primeiro título da trilogia, por exemplo, já apareceram personagens do “Cinzas do Norte”, e agora no segundo volume isso vai acontecer também. Os livros são, assim, como vasos comunicantes. Essa é uma ideia muito antiga. (Honoré de) Balzac fez isso à profusão. Dezenas e dezenas de personagens seus transitam de um livro para o outro. “A Comédia Humana” é construída por essas relações.

Recentemente, você escreveu um poema, “O Fim que se Aproxima”, provocado pelas queimadas na Amazônia. A maneira como o país lida com essa região tem piorado, a seu ver?

Na verdade, os governos brasileiros nunca tiveram um projeto para a Amazônia e, além disso, o mais grave é que eles nunca ouviram os anseios das comunidades da Amazônia, e isso envolve mais de 20 milhões de pessoas. O que pode ser interessante para o Tocantins ou Mato Grosso pode não ser para o Acre, o Amapá, o Pará ou Rondônia. A Amazônia é muito celebrada, mas, ao mesmo tempo, ela é ignorada pelo poder público. Eu já previa isso que está acontecendo agora em um livrinho de poesias que publiquei em 1978 chamado “Amazonas: Palavras e Imagens de um Rio entre Ruínas”. Ali há vários poemas muito amargos, um tanto pessimistas. Na década de 70, aconteceram as primeiras grandes queimadas na região do Pará. Mas, de lá para cá, isso nunca mais parou. E agora o presidente estimulou isso com um discurso antiambientalista, anti-indigenista. Tem uma coisa que eu acho importante falar, as pessoas falam da queima da floresta, mas não é só isso, é o impacto na vida das pessoas, das populações ribeirinhas, dos caboclos, das comunidades e dos indígenas. Como diz Viveiros de Castro, não é que a terra pertença aos indígenas, mas o principal é que eles fazem parte da floresta.

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