A manchete do “Diário de Notícias” de 1966 reproduzia, sem meias palavras, a contundência da entrevistada. “Nara é de opinião: esse Exército não vale nada”, dizia. Passadas mais de cinco décadas, a imagem da musa da Bossa Nova, pobre menina rica de Copacabana, tímida e de voz pequena como os cabelos cortados ao pé do ouvido, acabou se cristalizando, mas é justamente essa visão diminuta que livro e musical em homenagem a Nara Leão (1942-1989) procuram expandir. “Independentemente do lugar ao qual você pertence, é necessário ter um engajamento e entender o que acontece a sua volta. Foi o que a Nara tentou fazer, ela era antenada política e artisticamente. Parece que hoje as pessoas atuam sem consciência de sua inserção na sociedade”, avalia Daniel Saraiva. O mineiro de Oliveira é autor de uma dissertação que culminou no livro “Nara Leão: Trajetória, Engajamento e Movimentos Musicais”, previsto para ser lançado em maio.
Dividida em três capítulos, a publicação não segue uma linha cronológica, o que levou o autor a rejeitar o termo “biografia”. Orientado pela professora Silvia Brügger, da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), ele considera esse um trabalho historiográfico da vida e da obra de sua protagonista. Na primeira parte, o foco é a trajetória pessoal, enquanto a segunda se debruça sobre a atuação política, e o desfecho analisa a participação em variados movimentos musicais, com destaque para a rememoração do samba de morro e sua simpatia à insurgente Tropicália.
“A Nara sintetizou o que hoje chamamos de MPB. O repertório que ela escolhia era sempre elogiado pelos críticos, mesmo os que não gostavam de sua voz. Foi Nara quem tirou do ostracismo Zé Kéti, Cartola, Nelson Cavaquinho. Ela lança o Chico Buarque, grava Sidney Miller, Fagner, estava sempre buscando compositores novos e rememorando antigos. Canta ‘Camisa Amarela’ (de Ary Barroso) anos depois. Além de cantora, ela fazia um papel de pesquisadora”, destaca Saraiva. Essa constatação tem o exemplo mais claro na descoberta de uma das mais reverenciadas cantoras brasileiras. Foi Nara Leão quem, em 1965, sugeriu uma então desconhecida intérprete, que encontrou numa de suas andanças pelo interior da Bahia, para substituí-la no espetáculo “Opinião”, devido a um problema que teve com a voz. Por sua indicação, Maria Bethânia chegou ao Rio de Janeiro, acompanhada do irmão mais velho, um certo Caetano Veloso. Na ocasião, Nara tinha apenas 22 anos.
“A Bossa Nova surgiu em encontros na casa da Nara quando ela tinha 15 anos. Ela foi a única artista consolidada que topou gravar o disco da Tropicália (“Panis et Circencis”, em 1968). Muito nova já tinha uma dimensão das coisas que eu, com quase 30 ainda, não consigo ter”, confessa Saraiva. Para compor o livro, o autor realizou entrevistas com figuras importantes que conviveram com a cantora, como o próprio Caetano, e ainda Roberto Menescal, Danuza Leão (irmã de Nara), Capinam, Jerry Adriani, Alaíde Costa, Dori Caymmi, Sérgio Ricardo e Cacá Diegues, com quem a intérprete teve a filha, Isabel Diegues, que também dá seu depoimento. E Saraiva já tem um novo projeto. “Entender por que a obra de compositores nordestinos como Fagner, Fausto Nilo, Alceu Valença e Geraldo Azevedo não foi entendida como um movimento, ao contrário de outras da época”, revela.
Musical. A polêmica declaração em que criticava abertamente o Exército e a intervenção dos militares acabou por render a Nara uma ameaça de prisão, o que a levou a deixar o país e se exilar na França. Em sua defesa, Carlos Drummond de Andrade escreveu o poema “Apelo”. É de um dos versos do itabirano que os dramaturgos Hugo Sukman e Marcos França tiraram o nome para o musical “A Menina Disse Coisas”, que estreou neste mês no Rio, mas ainda não tem temporada confirmada em Belo Horizonte. “Quando vimos essa frase, descobrimos o nosso título. A Nara era uma pessoa que questionava, se posicionava, e a peça é isso, a fala dela”, explica Sukman.
Sem uma narrativa linear, a montagem parte de uma cena presenciada pelo próprio Sukman. “Eu estava na plateia do show do Carlinhos Lyra no dia em que ele começou a cantar uma música e alguém gritou: ‘Ela está aí!’. Aí o Lyra perguntou: ‘Ela quem?’”. Era Nara Leão, que prontamente subiu ao palco.