Segundo o teórico alemão Andreas Huyssen, vivemos tempos de um boom da memória ou dos discursos a respeito dela, onde a obsessão pela lembrança expressa a necessidade de uma “âncora temporal”, em uma época em que os processos tecnológicos estão modificando rapidamente o tecido social. Um exemplo simples para isso seria a “troca” da lembrança por uma navegada rápida no Google.
Assim sendo, a arqueologia tem se configurado como algo quase transgressor para os tempos digitalmente vaporizados que vivemos; a escavação do passado como um ato de busca por certa solidez informacional. No senso pop, recuperar o passado, parafraseando Chico Science, é “uma evolução musical”. Ainda no senso pop e agora negando o gênio pernambucano: “Cadê as notas que estavam aqui?”. Precisamos delas.
O músico e jornalista paulistano Bento Araújo talvez seja o maior ativista destas premissas hoje no país. Pilotando a espetacular publicação “Poeira Zine”, revista especializada no que poderíamos chamar de classic rock (mas indo muito além dos clichês), o próprio Araújo a define como uma publicação que “se destacou, em seus 13 anos de atividade, por ir a fundo nas pautas e ‘matar’ assuntos específicos”. Em suma, trata-se de jornalismo de pesquisador, um termo que deveria soar como pleonasmo, mas que cada vez mais parece raridade, diante da sedução da informação rápida (e muitas vezes pronta, mal-apurada, sem critérios) dos meios internéticos.
Dentro desse escaninho, Araújo resolveu realizar um trabalho que se materializa com louvor em “Lindo Sonho Delirante”, livro que lança neste mês e que oferece ao leitor um excelente panorama do que podemos chamar de “outra MPB” – a Música Psicodélica Brasileira. “Infelizmente, a história do rock brasileiro ainda é muito mal-explorada em livros e revistas. Até hoje, muita gente pensa que o rock nacional começou na década de 1980, com a explosão da Blitz e do BRock”, situa o autor. “Foi para reparar essa injustiça que nasceu esse meu interesse na arqueologia do rock nacional. Tivemos bandas e artistas sensacionais nas décadas de 1960 e 1970, mas muitos ainda continuam ‘malditos’, na total obscuridade”, diz.
Para “testar” a eficiência da teoria de Araújo, tente detectar as capas de discos espalhadas por esta página. Reconhece algum deles? É essa a ideia: “apresentar” para o presente obras escondidas pela névoa do passado. “Lindo Sonho Delirante” vai da psicodelia protocolar, digamos assim (Tropicália, Mutantes), até a obscuridade, em um exaustivo trabalho de curadoria. “Isso foi algo que fiz questão desde o início do projeto, incluir tanto os medalhões que flertaram com a psicodelia em algum momento de suas carreiras quanto os grupos e artistas obscuros que lançaram somente um compacto de forma privada e totalmente independente”, garante.
Ou seja, trata-se de uma obra que já nasce essencial para fãs de música hoje em dia, “pelo teor da pesquisa e pela contextualização da cena, que, para muitos, nunca de fato sequer existiu. Tem disco no livro, por exemplo, que você ainda não acha para escutar na internet”, sumariza Araújo.
Made in Brazil?
Curiosamente, alguns marcos da arqueologia da música nacional têm como ponto de partida referências de fora do país. Para muitos, a reavaliação histórica em relação aos Mutantes foi ampliada depois que Kurt Cobain, em visita ao país em 1992, elogiou largamente o trio. Tom Zé agradece frequentemente à atenção dada a seu trabalho por David Byrne, ex-vocalista dos Talking Heads e respeitado curador de música do mundo; os discos “Racionais”, de Tim Maia, viraram cult primeiro no exterior. “Pois é, o culto fora do Brasil é imenso, inclusive com diversos selos especializados em relançamentos de pérolas da música brasileira”, diz Araújo.
“Lindo Sonho Delirante”, portanto, parece ciente dessa ponte e traz tradução imediata dos textos para o inglês, como que sinalizando o grande interesse que os gringos têm na nossa obra musical. “Foi um grande desafio. Explicar quem foi Chacrinha e Grande Otelo, a importância da Semana de Arte de 1922 e o terror do AI-5 em português é fácil. Em inglês muda tudo”, revela o autor.
Mas o esforço valeu a pena e foi, de certa forma, premonitório, como ele ilustra, surpreso. “Durante o crowdfunding (forma escolhida para viabilizar o livro), mesmo sem alguma divulgação lá fora, comecei a receber apoio de pessoas de países como China, Rússia, Suécia, Israel, Escócia, Alemanha, Noruega, Inglaterra, Estados Unidos, França, Espanha e Japão”, enumera, deixando explícito quão forte é o interesse gringo pela nossa música. Já aos brasileiros, para Araújo, “falta sacar mais tudo isso que aconteceu”. “Mas acho que estamos evoluindo nesse sentido, e espero que muitos livros como esse pintem daqui pra frente”, conclui.
“Lindo Sonho Delirante” exigiu um longo processo de caça aos tesouros
“Não dá para seguir o que anda circulando pela internet. O melhor caminho foi falar com alguns dos envolvidos que viveram o período e vasculhar jornais e revistas daquela época”, revela Araújo. Se a rede é pródiga em oferecer dados, se mostra também um labirinto, onde nem todos os caminhos levam à melhor saída: no caso, à boa informação.
Com um trabalho gráfico muito forte, o livro também despendeu esforços na parte visual. “Tentei ao máximo priorizar a reprodução das capas das prensagens originais dos discos. Não possuo os cem discos em suas versões originais, então foi uma verdadeira caça ao tesouro com amigos e colaboradores. Teve até um colecionador russo, apoiador do crowdfunding, que mandou uma capa original do Alceu Valença para entrar no livro!”, diz.
Entre tantas obscuridades coletadas, uma em especial ganha o troféu “raro entre os raros”: o compacto de Oriana Maria, lançado em 1974. “Ela (Anamaria) foi esposa de Marcos Valle e depois caiu de cabeça na contracultura e no rock psicodélico. Gravou esse compacto na Argentina e depois sumiu, até virar a “mulher de branco de Ipanema”. Poucas cópias existem, e foi bem difícil levantar essa história e ouvir esse material. Eu nunca havia lido nada sobre esse compacto, nem mesmo na internet”, conta.