Em 2019, Ney Matogrosso, 78, rodou o Brasil com a turnê “Bloco na Rua”, e o resultado é o disco ao vivo (em uma apresentação sem plateia, como o cantor optou por gravar as músicas do espetáculo) de mesmo nome, que foi lançado no fim do ano passado em todas as plataformas digitais e agora chega ao mercado em formato de CD duplo.
Quem passa o olho pela seleção (ótima, diga-se de passagem) do repertório e percebe que “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua” abre o disco, pode pensar que o álbum é festivo e que abre alas para o Carnaval. Mas não se engane. Basta dar o play para se notar como a canção de Sérgio Sampaio ganha um tom roqueiro, com guitarras e percussões extremamente contemporâneas.
Rocks e riffs de guitarra estão por todo o álbum, que também traz outros ritmos e tem o mérito de nunca ser enfadonho. A guitarra marca “Jardins da Babilônia”, da época de Rita Lee com a banda Tutti Frutti, que também gravaram juntos “Corista de Rock”, outra oportuna escolha de Ney, que pinçou “O Beco” (1988) dos Paralamas do Sucesso, cuja letra segue atual: “No beco escuro explode a violência/ Eu tava acordado/ Ruínas de igrejas, seitas sem nome/ Paixão, insônia, doença/ Liberdade vigiada”.
Originalmente lançada em 1974 pelo cearense Ednardo, “Pavão Mysteriozo” (também numa pegada roqueira) é um resgate necessário de uma bela canção. De Chico Buarque, Ney vai de “Tua Cantiga”, do álbum “Caravanas”, de 2017, e “Yolanda”, letra em português de Chico para a música do cubano Pablo Milanés.
Do repertório do eterno “Maluco Beleza” Raul Seixas, Ney foi sábio ao resgatar “A Maçã”, hino ao amor sem controle e repressão e, sobretudo, à liberdade. “Quando eu te escolhi/ Para morar junto de mim/ Eu quis ser tua alma/ Ter seu corpo, tudo enfim/ Mas compreendi/ Que além de dois existem mais”.
O vocalista não se esquece dos tempos de Secos & Molhados e dá mais uma leitura para “Sangue Latino”, com mais guitarra e metais; e “Mulher Barriguda”, poema do artista, poeta e militante comunista Solano Trindade, numa releitura mais lenta e suingada, muito diferente da original, que tinha bem a estética do trio revolucionário que Ney formou ao lado de João Ricardo e Gérson Conrad nos anos 70. Nas letras de Trindade, o cantor também foi buscar “Tem Gente Com Fome”, que ele já havia gravado em 1979, no disco “Seu Tipo”.
A dupla Milton Nascimento e Fernando Brant se faz presente com “Coração Civil”, quando Ney entoa de forma incisiva os versos: “Sem polícia, nem a milícia/ Nem feitiço, cadê poder?”. Uma linda interpretação de “Como 2 e 2”, de Caetano Veloso, fecha “Bloco Na Rua”, registro de um artista potente e visceral que vai do rock ao samba com a mesma confiança e propriedade.
Além da excelente escolha de repertório, Ney imprime a usual competência artística, cantando nomes tão diversos do cancioneiro nacional e conseguindo, no fim das contas, colocar, com uma banda afiada, sua marca em todas as releituras – e em tudo que faz.
O intérprete deixa claro que está conectado com o novo, de peito aberto e espírito jovem, e essa é uma das características que sempre o fizeram um dos grandes da música brasileira.