Música

O Cavalo de Troia de Emicida 

Sem abrir mão da sofisticação, rapper lança álbum que traz um discurso contundente e tem a África como farol

Seg, 17/08/15 - 03h00
Temas. Em “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa”, Emicida faz uma ponte entre África e Brasil, passado e presente, para falar de racismo e orgulho negro | Foto:

“Cês diz que nosso pau é grande / Espera até ver nosso ódio” – é o recado que Emicida manda, dando voz a quem não tem, na música “Boa Esperança”, uma das 14 faixas de seu novo álbum, o recém-lançado “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa”. O clipe deste que é o primeiro single, dirigido por Kátia Lund e João Wainer, e que transporta para os dias de hoje o que seria uma rebelião da senzala contra a casa grande, contribui para elevar, com as imagens, o tom do discurso, que, diga-se, permeia todo o disco. A contundência das letras, que apontam o dedo na cara do racismo e de outras mazelas, vem, contudo, revestida, na maior parte do álbum, pela elaboração – e não raro delicadeza – dos arranjos. “O ‘Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa’ é um Cavalo de Troia”, diz o rapper.

“Essa dinâmica é proposital”, revela Emicida. “Embora todo mundo tenda a identificar num primeiro momento essa leveza, o disco tem um discurso muito sério e bem colocado, tudo ali está sendo dito da maneira como quero falar neste momento”, completa. Como contraponto ao teor agudo e combativo de letras como as de “Boa Esperança”, “8”, “Mandume” ou “Casa”, há a perspectiva mais luminosa de faixas como “Mãe”, “Amoras”, “Baiana” (com participação de Caetano Veloso) e o reggae “Passarinhos” (com Vanessa da Mata), que versam sobre família, amor e sobretudo o orgulho de ser negro.

“Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa” tem como cerne a África, para onde Emicida viajou em março deste ano, passando por países como Cabo Verde e Luanda, absorvendo influências e gravando com músicos locais. Não foi, como o rapper explica, uma viagem para o disco. “O interesse pela África é anterior, e parte basicamente do fato de eu ser preto. Os descendentes de espanhóis, de portugueses, de japoneses têm uma relação estreita com sua ancestralidade, e no caso de nós, pretos, essa relação, no Brasil sobretudo, foi interrompida. A chave para a autoestima é o conhecimento, se a pessoa sabe de sua origem, passa a se gostar mais”, destaca.

O que ele viveu na viagem explica o título do álbum. “Esses pontos do título foram imagens muito fortes na minha mente: crianças sorrindo, quadris dançando, pesadelos em volta deles, tentando roubar a alegria que lhes restou, e no meio de tudo isso cada um cumpria suas obrigações, fazia sua lição de casa. Achei que no meio de tanta informação poderia ter um título que apontasse essas imagens todas”, diz.

Emicida exalta o fato de ter podido contar, em seu álbum, com a bateria e percussão dos angolanos Ndu Carlos e João Morgado, com a guitarra de Kaku Alves, de Cabo Verde, ou com as Batucadeiras do Terrero dos Órgãos, do mesmo país. “Os caras são tipo brasileiros mesmo, amam o Brasil, são nossos irmãos. O que eu considero as três melhores músicas do mundo, a do Brasil, a dos Estados Unidos e a de Cuba, têm a África como matriz, então é sempre um aprendizado gigantesco você poder trocar informação e experiências com quem está lá. O samba, que é nosso, esbarra no semba, de Angola”, diz.

A sofisticação dos arranjos, Emicida aponta, deve-se muito à participação desses instrumentistas. Mas não vá perguntar a ele se, em termos musicais, isso confere ao rap que se faz hoje em dia, de um modo geral, uma feição menos sisuda. “Isso é um estereótipo que criaram. O rap nos anos 80 era uma coisa totalmente festiva. Acontece que num dado momento, a coisa do preto com uma arma na mão, agressivo, era o que vendia, interessava ao mercado, então ficou essa associação do rap com a sisudez, com a cara de mau. Tem muita música de festa, de celebração, sempre teve no rap nacional, mas nossa cultura, a cultura hip hop, é estereotipada como música sisuda, que não dialoga com nada. Não existe a cultura hip hop se não existe o beber em outras fontes, o buscar informações. Isso é e sempre foi a base do que a gente faz. Agora, porque você coloca ali uma banda tocando, dizem que o rap está mais musical? Trabalhamos muito para a desconstrução desse preconceito”, reage.

Ele destaca que o rap sempre foi musical se valendo das ferramentas que tinha. “O samba se fez musical em sua origem com a caixinha de fósforo em que se batucava, o rap fez isso com o toca-discos. O que a gente precisa fazer é respeitar as maneiras de se fazer cada coisa e entender que todas são legítimas”, diz.

Conhecido, desde que começou a despontar na cena, por sua habilidade no freestyle, Emicida explica que seu processo de composição é fruto de uma acurada observação. “O improviso é natural, é algo que sempre pratiquei, desde o início da carreira, nas batalhas de MCs, mas ele surge no momento, é um retrato, guarda o instante. Agora, poder juntar tudo o que você busca e tudo o que te bombardeia, processar isso e transformar numa expressão sua, é o que faz nascer a música que eu gravo. Você anota tudo o que te cerca e esse é seu material de composição. Anoto as coisas que estão ao meu redor, coisa que admiro ou que acho que precisam ser contadas, ser compartilhadas, vou anotando sempre, o tempo inteiro, daí chego em casa, junto tudo isso e vou que vou”, destrincha.

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