TIRADENTES. A mostra competitiva Olhos Livres, da 22ª Mostra de Tiradentes, teve início no domingo com a exibição no Cine Tenda de “Tragam-me a Cabeça de Carmen M.”, de Felipe Bragança e Catarina Wallenstein. O “pequeno longa-metragem” – de apenas 60 minutos – leva o espectador a experimentar o peso de ser Carmen Miranda por meio da vida de outra pessoa, a atriz portuguesa Ana (interpretada por Catarina, atriz e cantora portuguesa).
Ana vem ao Brasil na busca de material para recriar Carmen. Mora na Lapa, no centro do Rio, onde a Pequena Notável cresceu. Canta nos bares que Carmen frequentou. Tenta à exaustão comunicar-se com seu público, transmitir sua mensagem. O público acompanha a trajetória dessa atriz e cantora melancólica, esgotada por sua busca, engolida pela persona que criou e presa a um gestual que lhe impõe essa condição de mulher delicada, sensível, de voz aguda.
Por meio das reações no corpo e na mente de Ana, o público vivencia a trajetória de Carmen, esgotada pelo peso da personagem que ela mesma criou e virou símbolo da tropicalidade e do exotismo brasileiro. Uma cena em que Ana se despe de Carmen e canta samba em um bar, com um tom grave, em meio a uma angústia que se transforma em libertação, traz o tom feminista da obra, sem panfletagem.
“A ideia era indiretamente pensar na vida da Carmen como partitura, fazendo a transcriação na narrativa da Ana”, explica Bragança. “Era mostrar a Ana se preparando para ser a Carmem espelhando a carreira da Carmen na vida dela”. Durante o filme algumas dessas ideias ficam mais explícitas e outras mais misteriosas. Assim como os ensaios de Ana para um filme que sabe-se lá se é real ou não, com sua preparadora, interpretada por Helena Ignez, figura meio “fantasmagórica”, como define Bragança, que cobra a performance perfeita de sua pupila.
Bragança conta que Helena Ignez está no filme não só por ser uma grande atriz, mas também por ter uma relação com Carmen, na criação de uma interpretação performática. “Ela mesma me falou que achava que tinha trazido isso das conversas com Rogério (Sganzerla), que conversavam muito sobre a Carmen”, diz o diretor.
“Tragam-me a Cabeça de Carmen M.” também traz a questão do corpo como manifestação de transposição de barreiras. No início do filme, Ana está caída no chão e seu corpo é resgatado por uma travesti, que a enfeita e movimenta este corpo até então inerte. “A intenção é mostrar que se existem herdeiras desse movimento da Carmen Miranda, da construção deste corpo como lugar de desafiar limites e as premissas normativas da sociedade, são as travestis, as trans. Este corpo que, como fez a Carmen, passa por uma construção para se colocar, se impor”, fala Bragança. “E talvez, as travestis são as únicas que poderiam resgatar aquele corpo, pois outras pessoas talvez passassem direto”, afirma.
Reflexões. No Cine Praça, o público lotou as cadeiras, os canteiros e as escadarias do Largo das Forras para assistir ao documentário “Clementina”, de Ana Rieper.
Tanto em “Tragam-me” quanto em “Clementina”, os diretores propõem uma reflexão do Brasil para além destas figuras que, em suas singularidades, abriram as portas do mundo para a diversidade brasileira não só na música, mas na cultura em geral.