Residente nos EUA desde 1986, a brasileira Rosi Young foi ao teatro, em 2013, ver uma montagem de “A Bela Dama” com uma amiga negra. Na volta, “Xica da Silva”, de Jorge Ben, começou a tocar no rádio do carro, e a colega norte-americana passou a cantarolar a letra. “Eu perguntei se ela conhecia a Chica, e ela me deu um daqueles discursos afro-americanos sobre a importância do amor entre ela e João Fernandes para a cultura que representava. Disse que ela era a ‘rainha das Américas’. Eu, brasileira, loira, de olhos azuis, achava que a Chica era uma personagem do Cacá Diegues”, lembra Rosi.

Roteirista, a brasileira chegou em casa 1h da manhã naquela noite e começou a pesquisa do que viria a se tornar o projeto “Rainha das Américas”, um documentário sobre a icônica ex-escrava que se tornou uma das mulheres mais poderosas do Brasil do século XVIII. Mas, ciente das inúmeras produções e livros que já contavam a mesma história, Rosi decidiu transpor o obstáculo que sempre limitou essas obras: a ausência de uma imagem da verdadeira Chica. “Desde o começo, a gente queria que a Chica fosse um holograma no filme. Decidimos reconstruir o rosto dela e sobrepor em uma modelo, filmada contra um fundo verde, como um avatar falando e apresentando sua própria história”, descreve. 
Foi quando teve início o grande imbróglio do projeto.

Depois de contatar um dos maiores especialistas do Brasil em reconstituição facial forense, o designer Cícero Moraes, e ele recusar o convite por questões de agenda, Rosi contratou dois professores norte-americanos da Universidade do Arizona para o projeto. Segundo a roteirista, ela conseguiu a autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e eles vieram ao país para a exumação em novembro de 2015, na igreja de São Francisco, em Diamantina, e viajaram com os restos mortais de Chica em fevereiro de 2016. 

Os dois ficariam responsáveis pela reconstituição do crânio da ex-escrava, e uma terceira especialista norte-americana, Ann Horsburgh, que já havia trabalhado na análise do DNA do ex-presidente norte-americano Abraham Lincoln (1809-1865), faria o mesmo com o de Chica. Mas o tempo passou, e toda vez que Rosi mandava um e-mail tentando marcar a filmagem dos professores colando o crânio, eles alegavam que não podiam. “Até que, em junho, eu vi no site da faculdade uma manchete, ‘professores descobrem escrava brasileira’, com o vídeo deles trabalhando. E mandei um e-mail na hora, falando que eles não podiam filmar mais nada sem a nossa autorização”, conta a roteirista.

Foi o início de uma guerra de e-mails – e do sequestro de Chica da Silva. Segundo Rosi, a universidade continuou a divulgar o projeto como uma descoberta dos professores, até que ela e sua produtora decidiram cancelar a parceria, e os professores se recusaram a devolver os restos mortais de Chica. Foram sete meses de batalha judicial, com advogados e a Interpol envolvidos. “A universidade não acreditou na gente e dizia que os professores tinham um contrato com o Iphan. Eles nunca tinham ouvido falar da Chica. O contrato era no meu nome. O Iphan mandou carta afirmando isso. Só quando o consulado brasileiro entrou no meio, em novembro de 2016, dizendo ‘queremos de volta e queremos agora’ que a universidade baixou a crista”, argumenta Rosi. 

Os restos mortais só retornariam à sede do Iphan em Minas em maio do ano passado – quando a sorte começou a sorrir um pouco para o projeto. Na ocasião, Cícero Moraes estava apresentando a reconstrução facial do Homem de Lagoa Santa no Estado, foi contatado e, desta vez, pôde aceitar o convite. “Eu estava próximo, então já fui para o Iphan e comecei a fotogrametria, que é um processo de digitalização 3D por meio de fotografias”, lembra o designer. 

Rosi conta que as primeiras imagens que Cícero enviou por e-mail, porém, já a levaram às lágrimas. “O fêmur da Chica foi inteiro para o Arizona e voltou em pedaços. Eles só precisavam de uma mostra mínima, mas cortaram ele inteiro para o teste de DNA, que não era responsabilidade deles”, descreve a roteirista. O Magazine tentou entrar em contato com a assessoria jurídica da Universidade do Arizona, via e-mail, mas não obteve resposta. 

Rosi afirma ter contratado um advogado nos EUA, que entrou com um processo, solicitando todo o material produzido pelos professores e proibindo seu uso sem a autorização do Iphan e da igreja do Carmo. “Mas ou pagamos esse advogado em dólar, ou usamos o dinheiro para terminar o projeto. E achei melhor focar nossa história do que uma questão legal nos EUA. Focar os heróis, e não os vilões”, suspira. 

“Ela era uma mulher bonita”


Apesar de o imbróglio legal nos EUA ter custado um ano ao documentário “Rainha das Américas”, o projeto tem conseguido recuperar o tempo perdido. Já em sua primeira visita ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), quando teve o contato inicial com os restos mortais de Chica da Silva, o designer Cícero Moraes fez uma série de fotos, levantou medidas e, pouco depois, conseguiu reconstruir o crânio da ex-escrava.

“Havia algumas partes faltantes, pela forma como foi sepultada e pela perda de estrutura óssea. Mas hoje já temos dados acadêmicos que permitem a reconstrução”, explica Moraes. Em seguida, ele enviou o crânio reconstituído para um especialista no Instituto Médico-Legal (IML) do Rio de Janeiro, que determinou se tratar de “uma mulher de ancestralidade africana, de idade entre 30 e 50 anos”, o biotipo que se esperava de Chica. 

O passo seguinte foi o que Moraes chama de “escultura digital”, a reconstrução facial em si. A etapa envolve dois pontos: um anatômico, com a reconstrução dos músculos principais; e outro estatístico, com a colocação de marcadores de profundidade e espessura do tecido mole.

“Pode-se fazer uma analogia com um pedreiro fazendo um piso: ele tem o chão de terra, coloca vários níveis que correspondem ao piso e depois solta a massa de cimento.

Na reconstrução facial, colocamos uma série de níveis no rosto, soltamos uma ‘massa digital’ e modelamos”, descreve. Essa modelação, segundo o designer, é baseada em pesquisas feitas com indivíduos vivos que têm ancestralidade compatível com a de Chica.

Uma das principais descobertas do processo, de acordo com o designer, foi feita por Everton da Rosa, um dos integrantes de sua equipe, especializado em deformações faciais ósseas. Ele classificou Chica como “classe 2” – ou seja, ela tinha uma protusão dos dentes superiores, que normalmente é acompanhada pela dos inferiores. “Por isso, esperávamos que a face não ficasse tão bela. No entanto, quando finalizamos, foi o contrário. Ela era uma mulher muito bonita”, afirma Moraes.

Com a reconstrução finalizada há cerca de um mês, a produção do documentário aguarda agora os resultados finais do mapeamento do DNA, realizada por Ann Horsburgh. “Não acredito que vamos descobrir a causa certa da morte dela, mas teremos muitas informações interessantes, como formas de alimentação, se ela teve alguma doença que não conhecemos e, principalmente, a linhagem da Chica na África”, argumenta a roteirista Rosi Young. 

Com isso em mãos, ela afirma que o documentário deve realizar as entrevistas e filmagens finais em novembro. No momento, a produção acabou de selecionar a modelo Gerlen Moura, mineira de Teófilo Otoni, entre 236 candidatas, para criar o holograma de Chica da Silva.

Segundo Rosi, ele será apresentado no filme por Zezé Motta. A atriz foi convidada, no início do projeto, para assinar a direção-geral de “Rainha das Américas”. Mas, contatada pelo Magazine, afirmou que “não tem notícias do documentário há mais de um ano” e “não sabe como anda a produção”. 

“Estamos finalizando a parte científica do filme e, quando retornarmos ao lado artístico, vamos trazê-la de volta”, explica a roteirista. A produtora pretende lançar o longa em 2019, mas apesar de Rosi afirmar a existência de negociações com o canal National Geographic, a distribuidora Elo Company e a produtora Bananeira Filmes, o filme ainda não tem distribuição fechada. Enquanto isso, a roteirista afirma já estar trabalhando em um novo projeto com Cícero Moraes, envolvendo a Marquesa de Santos.

“Mas já aprendi a lição: nunca mais desenterrar ninguém”, reconhece.