“Os chamados bailes de ‘pancadões’ são somente um recrutamento organizado nas redes sociais por e para atender criminosos”. É assim que o empresário paulista Marcelo Alonso qualifica o baile funk ao apresentar a Sugestão nº 17/2017, que criminaliza o que ele chama de “falsa cultura” como “crime de saúde pública à criança, aos adolescentes e à família”. A proposta teve apoio de 21.983 pessoas, número suficiente para chegar ao Senado Federal. O texto está sob a relatoria do senador Romário (PSB-RJ), membro da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa.
Surgido nos morros do Rio de Janeiro na década de 70, o funk tem suas raízes na produção feita por mãos negras, jovens e pobres. Esse é o motivo, de acordo com o sociólogo Juarez Dayrell, de a criminalização do gênero ter chegado à instância federal. Dayrell também é autor do livro “A Música Entra em Cena: o Rap e o Funk na Socialização da Juventude” (Ed. UFMG, 2005).
“Estão na periferia o jovem, o negro e o pobre. E o funk articula essas três figuras. O funk é a expressão de uma cultura juvenil, e é muito fácil essa passagem de uma expressão cultural para uma expressão criminosa. A sociedade tem muito preconceito, que vem desde a época da escravidão. Junta-se a isso a desigualdade social e o negro é visto como o bandido, como o desqualificado. Nesse sentido, existe um peso muito significativo para o funk”, argumenta o sociólogo.
Segundo Dayrell, esse tipo de projeto vem de “uma classe média moralizante”, que atribui um peso desproporcional às letras de funk em relação aos demais estilos musicais. “As letras de funk que usam de palavras de baixo calão ou falam sobre sexualidade têm um peso diferente para quem as produz. Ao mesmo tempo, o funk expressa o acesso à cultura que as camadas populares têm. A educação está cada vez mais degradada, e o acesso aos bens culturais, cada vez mais restritos”, diz.
Contexto. O pesquisador detalha ainda que o desejo de criminalização do funk é um sentimento de uma sociedade “preconceituosa” e “muito refém dos meios de comunicação de massa”, em sua forma de lidar com o crime, o que acontece desde 1992, quando ocorreram diversos arrastões em praias do Rio. “Nessa época, houve uma vinculação direta do funk com a perspectiva da criminalidade. Com a onda do ‘proibidão’, o funk ficou ainda mais relacionado aos criminosos, e aconteceu mais reforço de preconceito”, diz.
Nos anos de 1995 e 1999 foram abertas, respectivamente, CPIs municipal e estadual para investigar a relação do funk com o tráfico de drogas. A última CPI, aliás, resultou na Lei 3.410/2000, que instituiu obrigações aos organizadores de bailes funk, como a instalação de detectores de metais em suas portarias e proibição de execução de músicas de apologia de crimes.
Contra a Constituição. Ao Magazine, Romário, relator do projeto, afirma que seu parecer será pela rejeição da proposta. De acordo com ele, o projeto vai contra o que prega nossa Constituição. “Entendo a preocupação da pessoa que sugeriu a proposta com a prática de crimes e a violência. Mas deve ser observado que a violência, o desrespeito ao próximo, os atos de vandalismo, o uso excessivo de álcool e a exploração sexual são comuns a todas as festividades conhecidas; não são exclusividade dos bailes funk”, diz o senador.
Cura do sintoma. De acordo com Renato Barreiros, diretor do documentário sobre funk ostentação “No Fluxo!” (2014), projetos como o apresentado ao Senado sobre a criminalização do funk são uma forma de cura do sintoma, não da doença, representada, neste caso, pelo aumento da criminalidade. “Para início de conversa: os principais bandidos do Brasil nunca frequentaram um baile funk. O conteúdo do funk choca as pessoas por conta do apelo sexual muito explícito. Mas não é porque fala do crime, incentiva o crime. Isso é um reflexo do que os jovens que escutam funk vivem. Em vez de curar a doença, as pessoas estão indo pelo sintoma. Se proíbem alguém de cantar, isso não muda a realidade”, diz.
Repercussão. A cantora Fernanda Abreu, que acompanha e defende a cultura do funk desde quando a conheceu, em 1989, afirma que projetos desse tipo são um “retrocesso total”. “Se tivesse um som tocando, sei lá, qualquer MPB aos berros na praia, estava tudo bem. Se tivesse um funkeiro tocando um som de funk às alturas na praia com quatro garotos pretos, já vinha polícia. Tinha esse lado porque ainda vivemos num país racista”, diz.
O artista mineiro Flávio Renegado, que produz músicas que vão do reggae ao funk, afirma que, no passado, como perseguiram o samba, agora querem perseguir o funk. “Não se deve preocupar com o que estão falando, mas o porquê de estarem falando. A favela só vira preocupação quando o sangue escorre do morro e suja o asfalto. O funk alimenta famílias, é uma cadeia produtiva. Como essas pessoas vão suprir essa lacuna social se não existir o funk”, questiona o cantor.
Valesca Popozuda, que viu sua carreira tomar projeção nacional com o funk proibidão do grupo Gaiola das Popozudas, do qual foi vocalista até 2012, tem opinião similar à de Fernanda. “Muita coisa mudou, porém o preconceito e a discriminação cultural ainda existem no Brasil. Boa parte das críticas que nós escutamos é formada pelo ponto de vista da exclusão. O Brasil sempre foi conhecido, principalmente internacionalmente, pela diversidade musical e cultural”, diz a cantora.
Anitta também usou seu perfil no Twitter para se manifestar contrariamente ao projeto. “O funk gera trabalho, gera renda... Pra tanta gente... Uma visitinha nas áreas menos nobres do nosso país, e vocês descobririam isso rápido”, publicou.
Para a funkeira MC Carol, o problema é o som ter vindo da comunidade. “Por que não proíbem o rap e o reggae? O reggae fala sobre droga e o rap fala sobre sexo, sobre arma, sobre um monte de coisa. Por que não proíbem música melancólica? Música melancólica faz as pessoas chorarem. Fazer a pessoa chorar fortalece para que ela entre em depressão. Só o funk vai trazer coisas ruins para a população?”, questiona.
Funk de “Asa Branca” é vetado
Família de Luiz Gonzaga proibiu versão da canção icônica dias depois de projeto de lei pedir a criminalização do funk
FOTO: BMG / DIVULGAÇÃO |
Música de Luiz Gonzaga foi transformada em funk pornográfico |
SÃO PAULO. A sugestão do empresário paulista Marcelo Alonso enviada ao Senado Federal, que pede a criminalização do funk “como crime de saúde pública à criança, aos adolescentes e à família”, não foi escrita com base na versão do MC Yuri, de Rio Preto, para “Asa Branca”. Mas é a letras como a do paulista que o projeto se refere.
“Tu vai sentar/ Tu vai quicar/ Por cima do meu p...”. Com a melodia da canção de Luiz Gonzaga, o funkeiro MC Yuri, 19, compôs o single “Festa Junina da Putaria”, que chamou atenção na internet imediatamente ao ser divulgada no último dia 6, poucos dias depois de a sugestão de Alonso ter recebido a adesão de mais de 20 mil pessoas. A repercussão foi tamanha que a canção foi retirada do YouTube no dia seguinte, quando já havia alcançado mais de 30 mil visualizações.
Quem pediu para que a versão funk pornográfico da canção de Gonzagão e Humberto Teixeira (autor da letra original) fosse retirada do ar foi o neto do Rei do Baião, Daniel Gonzaga. “Amigos. Sobre o funkeiro que fez a versão de ‘Asa Branca’. Obrigado a todos os que me avisaram. A editora já foi alertada e o vídeo retirado do ar. Achei mais uma fuleiragem de garagem do que um hit.... Nem engraçado achei. Deem atenção não, que passa. Se ficar falando nisso... volta. Ajudem o ostracismo a fazer seu trabalho. Obrigado por essa rede magnífica de proteção”, escreveu na rede social.
Filha de Gonzagão, Rosinha Gonzaga já participou da campanha Vozes em Defesa do Direito Autoral da Ecad, em 2013, na qual defende o pagamento de direitos autorais como reconhecimento à importância do trabalho.
Mc Yuri. “Faz parte do próprio contexto do funk, né? Pode e tem coisas ofensivas (nas letras das músicas)”, diz Eder Fasanelli, advogado de MC Yuri, que reconhece que o teor da versão gerou reações do público. “Os funkeiros têm aquele padrão e o resto da população acha o funk ofensivo”, diz. “Vale destacar que o caso sugere a necessidade e a importância do debate e discussão sobre as opções e gêneros musicais atuais”, disse o funkeiro por meio de comunicado.
MC Yuri, que assina ainda versos como “Vem Novinha/ Não perde a linha/ MC Yuri manda pra tu”, afirmou que não tem nenhuma intenção de prosseguir com qualquer espécie de divulgação, segundo seu advogado. Mas Fasanelli afirma que, apesar de a música ter sido retirada do ar, ela continua circulando na internet por sites não oficiais.
Apesar de o conteúdo utilizar indevidamente a obra de Gonzagão, Fasanelli acredita que, mais do que tudo, foi grave o fato de a versão ter ofendido a família do compositor pernambucano.