SÃO PAULO. Quando Raduan Nassar chegou ao Museu Lasar Segall ontem para receber o Prêmio Camões, maior honraria da literatura em língua portuguesa, ganhou um abraço de Luiz Schwarcz: “Raduan, chegou o dia! Vai passar rápido!”. Mas devem ter sido longos minutos para Raduan.

Possivelmente prevendo que o autor de “Lavoura Arcaica” faria um contundente discurso contra o governo, o Ministério da Cultura inverteu a ordem tradicional da cerimônia. Em vez de falar por último, Raduan foi o primeiro.

Isso permitiu que o ministro Roberto Freire tivesse a última palavra na cerimônia, causando constrangimento com uma resposta agressiva a Raduan, que havia acusado o governo de golpista. O ministro sugeriu que o escritor não deveria aceitar o prêmio, no valor de  100 mil (cerca de R$ 330 mil).

Freire nega que o ritual do evento tenha sido invertido. “É um adversário recebendo um prêmio de um governo que ele considera ilegítimo”, disse o ministro, debaixo de vaias e gritos de “Fora, Temer” da plateia. “Quem dá prêmio a adversário político não é a ditadura!”, reagiu.

O clima era tenso. Enquanto Freire falava de improviso, deixando de lado o discurso que havia preparado, a plateia o interrompia com protestos. O poeta e professor da USP Augusto Massi dizia ao ministro: “Acho que você não está à altura do evento!”.

“Permitimos que o agraciado dissesse o que quisesse e imaginasse”, rebateu Freire, qualificando o protesto de Raduan como “histriônico”.

“Lamentavelmente, o Brasil assiste hoje a pessoas da nossa geração, que podiam dar testemunhos da sua experiência, que viveram um golpe verdadeiro, dando o inverso de todo esse testemunho”, falou o ministro.

Massi lembrou que a obra de Raduan é política. Em um dos ensaios mais importantes sobre a obra do premiado, a crítica Leyla Perrone-Moisés o filia ao que chama de uma “literatura de revolta” e mostra sua relação com o momento da ditadura militar.

A filósofa Marilena Chaui, também presente, gritou “O silêncio é precioso” e ouviu do ministro que ela estava dizendo aquilo por ser “de classe média” – em referência à ocasião, em 2013, em que a intelectual bradou que odiava a classe média.

O Camões, instituído em 1988 em acordo entre Brasil e Portugal, foi concedido a Raduan 17 dias após Dilma ser afastada pela abertura do processo de impeachment, em maio passado.

Impossível calar. O crítico discurso do escritor, de apenas duas páginas, concluía-se com as frases: “O golpe estava consumado. Não há como ficar calado”.

O primeiro criticado foi o ex-ministro da Justiça Alexandre de Moraes. Raduan acusou-o de responsável pela invasão de escolas ocupadas, pela prisão de Guilherme Boulos e pela “violência contra a oposição democrática” que se manifesta nas ruas.

“Esta figura exótica agora é indicada ao Supremo Tribunal Federal”, disse. “Esses fatos configuram por extensão todo um governo repressor. Governo atrelado ao neoliberalismo com sua escandalosa concentração de riqueza”.

“Mesmo de exceção, o governo que está aí foi posto, e continua amparado pelo Ministério Público e, de resto, pelo Supremo Tribunal Federal”, afirmou o autor, criticando ainda a decisão do STF que permitiu a Moreira Franco, citado na Lava Jato, ganhar status de ministro e consequente foro privilegiado.

“Em sua decisão, o ministro (Celso de Mello) acrescentou um elogio superlativo a Gilmar Mendes por ter barrado Lula para a Casa Civil. Dois pesos e duas medidas”. Raduan ainda elogiou a ex-presidente Dilma Rousseff, a quem chamou de íntegra.


Obra de Nassar

O autor brasileiro, filho de imigrantes libaneses, publicou apenas três livros. Um romance, uma novela e uma coletânea de contos. Eles são, respectivamente:

“Lavoura Arcaica”, 1975

“Um Copo de Cólera”, 1978

“Menina a Caminho”, 1994

Tanto “Lavoura” quanto “Cólera” foram adaptados para o cinema.


Reações

Governo acusa aparelhamento

FOTO: Tiago Queiroz / Estadão Conteúdo
Ministro da Cultura, Roberto Freire, criticou o premiado em sua fala

SÃO PAULO. A presidente da Biblioteca Nacional, Helena Severo, dizia, após os discursos, ao embaixador de Portugal, Jorge Cabral, ter “sentido vergonha como brasileira” pela situação. “Acho que não era um momento de luta política, era a entrega de um prêmio literário”.

Na saída, o ministro ainda discutiu com pessoas da plateia. O poeta e professor da USP Augusto Massi diz ter sido chamado de “idiota” por Freire. “Eu não o ofendi, tentei lembrar que o momento era do Raduan. Acho estranho que um político com a história dele marque uma pessoa depois do debate e vá chamar de idiota. Eu não fui ofensivo quando me manifestei”.

Pessoas do ministério dizem que Freire costuma reagir mal quando é chamado de golpista e esta foi a primeira ocasião em que se viu contestado por tanta gente.

Aparelhamento. Após a cerimônia, o Ministério da Cultura divulgou um comunicado oficial lamentando “mais uma vez, a prática do Partido dos Trabalhadores em aparelhar órgãos públicos e organizar ataques para tentar desestabilizar o processo democrático”.

“O agraciado foi respeitado por todos durante sua fala, ao contrário do que ocorreu com o ministro da Cultura, interrompido de forma agressiva”, seguia a nota. “Apesar de ser um adversário político do governo, Raduan recebeu o prêmio, legitimando sua importância”, observava ainda o texto.