Há três décadas, surgia o LP “Hip-Hop Cultura de Rua”, que é considerada a primeira coletânea do gênero lançada no Brasil. O disco reunia, por exemplo, composições de Thaíde e DJ Hum, além de MC Jack. Em seguida, veio a público também a compilação “O Som das Ruas”, da qual fez parte o grupo Sampa Crew. No mesmo ano, outra coletânea, batizada “Consciência Black”, divulgava o trabalho de artistas recém-chegados na área, como os Racionais MC’s e a rapper Sharylaine.
Em Belo Horizonte, o álbum “Fábrica Ritmos”, de 1992, tornou-se o primeiro registro fonográfico do que vinha sendo produzido de rap na cidade. Nomes como Evandro MC e Black Soul assinavam algumas das faixas ali gravadas. De lá para cá, o segmento suplantou a resistência de setores da sociedade e conseguiu expandir-se no país, em sintonia com um movimento global que colocou a cultura hip hop no epicentro dos interesses de mercado.
Dessa forma, a profissionalização dos artistas brasileiros do rap veio como um reflexo direto desse processo, e a chegada da internet tornou mais fácil a circulação de trabalhos que, anteriormente, dependiam da boa vontade das rádios para serem veiculados. O horizonte atual, portanto, revela-se promissor para os novos talentos, que encontram alternativas antes inacessíveis para aqueles da “velha escola”.
Para estes, no entanto, o desafio é saber evitar a efemeridade dos modismos, mantendo o rap vinculado aos outros pilares que sustentam o hip hop. São eles os b-boys, que atuam na dança, os DJs e os grafiteiros. Essa preocupação não é recente e já em 1999 o rap “O Verdadeiro Hip Hop”, concebido por MV Bill ao lado de P.MC, Magno C4, Neo Boy, DJ TR, Dom Michel & Ice Blue deixava isso claro, como mostram os versos de DJ TR: “Não abrace o hip hop pelo visual/ Lute pela consciência, pela moral/ O rap não é moda, o palco não é passarela/ O que se conta numa letra é coisa séria”.
Para o carioca MV Bill, a mensagem contida ali continua atual. “O hip hop não é só uma música, mas uma cultura que engloba vários elementos. Quando o conhecemos naquela época, a relação veio dessa forma, como um conjunto de ações. Acho que a cultura toda era respeitada. Hoje em dia, eu vejo que muitos são fãs de alguns MCs, mas poucos curtem a cultura em torno, que é mais ampla. Isso não chega a ser um incômodo, mas é uma realidade de algo que acontece não só no Brasil, mas no mundo inteiro”, diz.
Bill, contudo, vê com bons olhos a ampliação do alcance do rap. “Não me incomoda que ele tenha chegado a outros lugares, acho apenas importante a lembrança de quem ajudou a pavimentar essa estrada. Para que outros grupos pudessem brilhar hoje, houve uma construção, e eu fico feliz de poder fazer parte dessa transição, atravessando gerações”, completa.
Tal perspectiva é compartilhada pelo rapper paulistano Rico Dalasam. “Depois do advento do rock, o hip hop tem sido o que mais cresce e é consumido pelos jovens do mundo inteiro. Mas acho que nunca deve se perder de vista quem é fundamento. Alguns nomes são para sempre”, pontua ele.
O belo-horizontino Radical Tee, que começou em 1991 e é um dos criadores do grupo Retrato Radical, também sublinha a transformação do hip hop num fenômeno de massa. Isso, a seu ver, é algo predominantemente positivo. “Eu percebo que o hip hop está presente no Brasil inteiro e ele é algo que movimenta a moda, as artes, o cinema, a música, e tem essa capacidade de entreter como outras culturas, a exemplo do rock, da MPB, do samba. Ele consegue dialogar também com essas e outras vertentes, por isso tem um potencial muito forte, o que gera emprego, e, hoje, o mercado tem interesse em dar visibilidade a esses artistas”, comenta ele.
Nesse contexto, observa a também belo-horizontina Bárbara Sweet, surgiram parâmetros distintos daqueles de uma década atrás. “A gente costumava juntar uma galera para fazer shows, mas aquilo não era feito com muita pretensão. A cobrança do público também era menor e não existia muita perspectiva de crescer e ganhar dinheiro. Isso a gente via acontecer mais nos Estados Unidos. Havia uma coisa bem orgânica e a gente fazia aquilo porque amava e não porque dava dinheiro. Hoje, não sei se são todos que fazem o trabalho têm esse tipo de envolvimento, mas o certo é que, se você fizer algo bem feito, atualmente isso traz um retorno, ainda bem, graças a Deus”.
A rapper, também da capital mineira, Paula Ituassu expressa opinião semelhante. “Antes a gente nem queria saber do mercado, e hoje eu acho que a gente até o respeita mais um pouquinho, mais por conta da abertura que ele está dando para uma galera que vem do ‘underground’”, pontua.
Tamara Franklin, que nasceu em Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte, e vem consolidando seu espaço no rap, percebe todo esse cenário atual como o resultado de uma série de conquistas. Contudo, reflete sobre os espaços em que o rap deixou circular quando espraiou-se para outras plagas.
“Com o passar do tempo, o rap foi sendo assimilado por outras classes. Na década de 90, ele era muito forte dentro das periferias e era visto como música de bandido, marginal. Hoje não é mais assim. Por outro lado, eu acho que o rap perdeu um pouco desse espaço nas periferias. Ele se descentralizou, o que representa um avanço muito grande, porque passamos a ocupar lugares onde antes não estávamos. O olhar das pessoas para o rap se modificou, porém eu noto que essa não é tanto a música que os jovens da periferia têm ouvido. Ao menos é o que eu percebo na minha quebrada”, comenta Tamara.
Batalhas de MCs abriram novas portas
Um dos capítulos mais recentes da história do rap no Brasil são as batalhas de MCs. Pedro Valentim, integrante do grupo Família de Rua, que organiza em Belo Horizonte o reconhecido Duelo de MCs, contextualiza como a disputa baseada no ‘freestyle’, gênero marcado pela improvisação das rimas, começou a se consolidar no país a partir de 2000.
“Foi nesse ano que a Brutal Crew começou a fazer batalhas todo sábado no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. O evento passou a ganhar visibilidade fora de lá e isso influenciou a criação de outras batalhas. Em 2007, eles organizaram a Liga dos MCs, que propunha conectar artistas de outros lugares, e promoveram seletivas em alguns Estados, entre eles Minas Gerais. Foi a partir disso que a gente teve o interesse em realizar uma batalha periódica na cidade”, recorda Valentim.
Ele observa que as batalhas serviram como porta de entrada para muitos interessados nesse universo. “Elas também permitiram que iniciantes pudessem encontrar ali ambiente para treinar as rimas, dando novos passos em sua formação”, diz Valentim. O paulistano Rico Dalasam, por exemplo, conta que iniciou sua trajetória nesses torneios. “As batalhas se tornaram o sonho de muitos moleques de várias capitais do país que sonham com uma vitória ou mesmo com um segundo, terceiro ou até o quinto lugar. Elas se tornaram um grande celeiro de artistas e delas, às vezes, é possível saber quem vai para o mercado”, frisa ele.
O rapper belo-horizontino Monge também mostrou suas primeiras rimas nesses eventos. “Eu já estava próximo da cultura hip hop por meio do grafite e já escutava rap. Mas em 2007, eu comecei a participar das batalhas. E acho que em termos de Brasil, elas são um divisor de águas, no sentido de facilitar a entrada da rapaziadas mais nova no rap. A partir delas também, muitas pessoas acabam se integrando à cultura hip hop como um todo”, diz Monge.
Para Evandro MC, que participou da primeira coletânea de rap produzida e lançada na capital mineira, em 1992 – época em que as batalhas não estavam tão em voga –, elas são atrativas ao estabelecer uma ponte com o rap underground. “Desde o início do rap, esse gênero era praticado nos Estados Unidos. Elas eram baseadas no conhecimento e um disputava com o outro a partir da informação. Eu não gosto quando um vai detonando o outro. O que acho mais relevante nelas é a forma como o rap underground pode encontrar um espaço ali, e é dele que podem surgir as novas tendências”, frisa Evandro.
Mais vozes femininas e LGBTs
Desde o início do movimento hip hop, as mulheres e os LGBTs mantêm-se presentes em diversas frentes. Mas é recente a maior atuação de rappers que trazem em suas letras visões diversas baseadas na experiência cotidiana, seja ela ancorada numa vivência como mulher, lésbica, gay, travesti ou transgênero. Essa condição acompanha as mudanças no panorama atual, em que grupos, considerados minoritários, têm requerido o seu direito de voz. E o rap também têm sido um meio cada vez mais apropriado por eles.
Para a rapper belo-horizontina Ohana foi justamente essa questão da representatividade que a aproximou do hip hop. “Isso aconteceu num período em que eu estava numa transição pessoal muito grande e queria me reconhecer como mulher negra. Eu procurava muito minha identidade e a minha estética, enquanto passei a buscar minhas raízes negras. O hip hop me chamou atenção, primeiramente, pela representatividade. Nessa cena, eu me via no outro, e como o hip hop já nasceu com essa trajetória de resistência, eu acabei encontrando ali um espaço confortável para falar”, diz Ohana.
A rapper Paula Ituassu, também da capital mineira, sublinha como até pouco tempo, no entanto, o meio era muito mais fechado. “Antes não se podia falar de transgênero dentro do rap. Dizer que fulano era gay, então, era quase proibido. Acho que os movimentos de empoderamento, em geral, ajudaram muito a quebrar isso, e hoje a gente percebe que a visão tem mudado, e há uma intenção de que todos vejam apenas as pessoas e os talentos que elas têm, e parem de se preocupar com o que é desnecessário”, comenta Paula.
A belo-horizontina Bárbara Sweet, por sua vez, pondera que, apesar de a atuação feminina no rap estar ganhando mais espaço, ela está aquém do ideal. “As mulheres têm alcançado patamares grandes, como Karol Conka, que virou uma estrela pop mesmo. Temos também a Flora Matos, que fez um disco maravilhoso recentemente, além de Sarah Guedes, Tamara Franklin, entre outras mulheres que perceberam que a mudança só vai vir pelas nossas mãos. Acho que essa é a grande transformação para as mulheres dentro do hip hop. Mas quando visualizamos as melhores listas de rap do ano é raro ver uma mulher, e, quando há, encontramos só uma”, frisa ela.
Bárbara também questiona a maneira como o trabalho feito por mulheres é nomeado genericamente de “rap feminino”, o que, a seu ver, pode contribuir para uma segregação. “Eu não gosto disso porque ninguém fala ‘rap masculino’. Então, quando dizem rap feminino, isso pode soar, às vezes, como uma desqualificação. Aí dizem: ‘eu gosto de rap, mas é muito chato aquelas coisas de mulher’. Ora, mas a gente é mulher! Cada um fala de sua experiência. Acho importante evitar a subcategorização, porque a gente precisa conquistar o público de forma ampla”, diz.
FOTO: Fred Magno |
Atuação feminina é maior, mas ainda luta por reconhecimento |
Uma arte que figura em constante transição
Roger Deff, um dos integrantes da banda belo-horizontina Julgamento, acrescenta que o rap sempre teve uma fluidez e uma capacidade grande de transitar. E essa característica, para ele, acentuou-se nos últimos anos. “Durante um bom tempo, o rap se manteve bastante em cima da questão dos conflitos políticos e sociais da periferia. Depois, ele passou a diversificar os temas. O que não quer dizer que o rap com crítica social deixou de existir. Acho que cada artista tem a possibilidade de escolher os temas que quer dialogar. Nós, do Julgamento, optamos por um caminho de abordagens mais críticas, mas também buscamos diversificar as formas e os assuntos. Essa diversificação também é importante porque permite alcançar outros públicos”, diz Deff.
FOTO: Henrique Grand/divulgação |
Rico Dalasam é um dos nomes que emergiu no contexto das batalhas de MCs |