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Festival começa hoje sua 18ª edição com mais de 60 filmes em exibição no Humberto Mauro, Cine 104 e na UFMG

Por Daniel Oliveira
Publicado em 20 de novembro de 2014 | 04:00
 
 
Lusitano. Destaque da competitiva internacional, o português “Cavalo Dinheiro” ganhou quatro prêmios no festival de Locarno, inclusive melhor diretor para Pedro Costa fotos: filmes de quintal / divulgação

Foi Godard quem disse que todo bom filme de ficção pende para o documental e todo bom documentário tem um pouco de ficção. Por trás da máxima, está a ideia de que todo cinema de qualidade é um recorte da realidade transformado em narrativa pelo olhar de um grande artista. É exatamente esse trabalho que o Forumdoc, que começa hoje e vai até o dia 30 exibindo mais de 60 produções, vem reconhecendo há 18 edições – oficialmente o festival mais vezes realizado em Belo Horizonte.

E para Júnia Torres, uma de suas coordenadoras, essa conexão com os temas importantes do universo contemporâneo é um dos motivos que mantém a mostra relevante e o público interessado depois de todo esse tempo. “A gente tem esse foco na ficção e no documentário que dialogam com o mundo em que a gente vive, e essas questões que interessam à maioria das pessoas acabam vazando na programação”, considera.

Isso fica muito claro na escolha do israelense Avi Mograbi, diretor de documentários como “Z32” e “Agosto, Antes da Explosão”, como homenageado desta edição (leia nossa conversa com ele na página 2). O diretor, que terá uma retrospectiva no festival e vem a Belo Horizonte ministrar uma oficina, foi escolhido pelo coletivo do Filmes de Quintal (responsável pela mostra) no início do ano, antes do agravamento do conflito na Palestina. Mas os eventos recentes e a cobertura constante e superficial da mídia tornam o conhecimento do seu trabalho mais importante do que nunca.

“Como israelense, ele tem a possibilidade de estar numa posição geográfica e social que os palestinos não têm. Então, ele usa esse lugar como sujeito politicamente situado para fazer um cinema que critica fortemente as ações do Estado de Israel frente à Palestina”, avalia Torres.

O cinema de Mograbi exemplifica ainda o segundo motivo que a coordenadora aponta para a longevidade do Forumdoc. “Para você falar de questões políticas e sociais do seu tempo, não precisa fazer um documentário careta ou didático. A partir de questões formais poderosas, você consegue alcançar muito mais”, ela argumenta.

Mas o melhor exemplar dessa preocupação formal da curadoria está provavelmente no longa que abre o festival hoje, às 19h, no cine Humberto Mauro. Aclamado na mostra de Tiradentes em janeiro e grande vencedor do último Festival de Brasília com 11 prêmios, inclusive melhor filme e ator, “Branco Sai, Preto Fica” é uma ficção científica em que Adirley Queirós e o coletivo CeiCine criam uma Brasília distópica para retratar a violência e segregação a que são submetidos os jovens negros da periferia no Brasil hoje.

“Eles usam a ficção científica para fazer uma revisão da história e apontar um novo futuro, que não sabe se é distopia, se é explosão”, analisa a coordenadora. Para ela, o que importa é que o filme é uma atuação desses jovens na história. “É um petardo, uma bomba que nos desloca do nosso lugar de sociedade que se acha plena de democracia racial quando, na verdade, os negros estão sofrendo todas as violências e violações”, dispara Torres, sobre o filme que abre o Forumdoc no Dia da Consciência Negra e será comentado pelo diretor após a sessão.

“Branco Sai, Preto Fica” é ainda parte de uma onda do cinema brasileiro recente que marca forte presença na competitiva nacional deste ano. Dos mineiros “A Vizinhança do Tigre” e “Ela Volta na Quinta” (que tem sua première na capital) ao pernambucano “Brasil S/A”, os filmes trazem um turvamento cada vez mais indistinguível da linha entre ficção e documentário, resultando em produções provocadoras que, para Torres, compõem uma das melhores competitivas que o Forumdoc já teve. “A nós interessam muito esses trabalhos que utilizam procedimentos de fabulação, invenção e ficção para dar conta da subjetividade dos realizadores ou da forma como eles expressam suas visões políticas”, explica a coordenadora.

No entanto, essa não é uma prática exatamente nova e, na verdade, o festival presta neste ano uma homenagem ao saudoso e pioneiro Eduardo Coutinho, responsável por alguns dos ziguezagues mais interessantes com essa linha entre ficção e documentário que Godard tanto desejava costurar. No dia 23, às 17h, a mostra exibe “A Família de Elizabeth”, último trabalho do documentarista, no qual ele retorna à família de “Cabra Marcado para Morrer”.

“A partir dessa relação dele com a Elizabeth, ele reabre e repensa as grandes questões da história brasileira nos últimos 50 anos, trazendo o processo de fazer o filme para dentro do documentário e mostrando que não existe uma realidade que o diretor vai captar, mas sim uma atuação dele sobre a própria história e a sociedade no momento de fazer o cinema”, analisa.

O último destaque do Forumdoc deste ano é a mostra A Escola e a Câmera, que reúne obras de nomes como Gus Van Sant (“Elefante”) e Frederick Wiseman (“At Berkeley”), que tematizam as instituições escolares. “Ao mesmo tempo em que esses filmes fazem suas críticas a esses processos de socialização, a gente também traz três projetos de realização audiovisual em escolas públicas, problematizando a questão do cinema como ferramenta de pesquisa que o festival promove desde sua criação”, define Torres, sobre essa mostra que recorta a realidade e atua sobre ela.