O professor Samuel Junqueira fala sobre a obra de Ivan Turguêniev, um dos mais importantes escritores russos do século XIX, pouco conhecido do grande público brasileiro. Ele acaba de traduzir “Diário de um Homem Supérfluo”.

Minientrevista

Qual é a importância de Turguêniev para a literatura russa?

Sem dúvida, muito de sua importância se deve ao retrato que ele faz da sociedade russa. Ele conseguia captar a complexidade social de sua época e dar-lhe uma forma literária que a representasse fielmente, sem se posicionar politicamente. É exatamente por isso que suas obras eram frutos de tanta polêmica. Ele procurava denominar as gerações que retratava, e essas denominações fixaram-se na literatura russa. Os termos “homem supérfluo” e “niilista”, são de sua autoria. E não podemos esquecer que Turguêniev foi o escritor russo mais conhecido na Europa em sua época. Muito da popularização da literatura russa no Ocidente deve-se a ele.

Em que medida o trágico e a tentativa de compreensão do mundo e da alma humana são relevantes na obra de Turguêniev?

Turguêniev escreveu um ensaio chamado “Hamlet e Dom Quixote”, em que contrasta as características e as visões de mundo dessas duas personagens. Hamlet seria uma figura altamente reflexiva, cética, egocêntrica, consciente das próprias limitações, por isso incapaz de qualquer ação mais concreta. Dom Quixote, ao contrário, representaria a abnegação, o altruísmo e a fé. Vemos essa contraposição na obra de Turguêniev quando confrontamos o tipo supérfluo com o niilista. São percepções de mundo que perpassam por Turguêniev, e precisamos tê-las em mente para melhor compreender sua obra.

Em poucas palavras, como poderíamos definir o conceito de “homem supérfluo”?

O homem supérfluo é uma representação literária da juventude aristocrata russa da primeira metade do século XIX. Esses jovens puderam estudar no exterior e, por isso, tiveram um contato direto com os valores europeus, com os ideais iluministas. Dessa forma, eles terminam se conscientizando do atraso histórico-social em que se encontrava seu país. Cria-se, então, um desejo de mudança, um anseio por reformas que diminuam essa distância, que não se concretiza. Dessa forma, temos uma geração na Rússia altamente idealista, querendo colocar em prática os valores que cultivava, mas que se via impossibilitada de agir, de dar vazão ao que defendia. A consequência foi ela se tornar extremamente cética, desalentada. E foi isso que Turguêniev procurou retratar em suas obras.

Qual é o traço marcante da personalidade do protagonista do livro, Tchulkatúrin?

É uma personagem que anseia por ser útil, por criar relações pessoais e se libertar daquela situação de isolamento. Ele se vê sozinho no mundo, o que o leva a adquirir um caráter extremamente autocorrosivo.

Quais os principais temas abordados por Turguêniev em seus livros?

O amor não correspondido é um tema presente; a questão do não pertencimento, de se sentir um estranho em seu próprio país é outro tema do qual Turguêniev nunca se desvencilhou. Enfim, é um escritor que explorou temas que eram determinantes na sociedade russa. E tudo com uma linguagem altamente poética, pacientemente trabalhada e construída, que flui naturalmente, ao contrário de Dostoiévski, que possui um estilo mais brusco, coloquial. É bom lembrar que Turguêniev começou sua carreira literária escrevendo poesia, o que influenciou muito sua prosa.

Divagações diante do triste e dissonante espírito humano

“Diário de um Homem Supérfluo” (Editora 34), do russo Ivan Turguêniev (1818-1883), acaba de ganhar sua primeira tradução para o português. No livro, publicado em 1850, que tem a forma de um diário íntimo, um jovem à beira da morte reflete sobre a sua paixão por Liza, filha de um proprietário de terras, e sobre seu sentimento de desajuste com a vida, próprio da geração que cresceu sob o regime repressivo do csar Nicolau I. Turguêniev traça, diante de uma tensão psicológica constante, o drama deste “homem supérfluo”, uma das personagens-tipo mais emblemáticas da literatura russa do século XIX. A obra foi traduzida diretamente do russo pelo professor Samuel Junqueira, que também assina o posfácio da edição.

Turguêniev revela as confidências e desventuras do protagonista, Tchulkatúrin, um jovem desconectado de tudo e de si mesmo, e adentra, não sem um grande fascínio, nesse espírito contundente e profundo. Se cabe aqui a metáfora de um labirinto, Turguêniev amplia a dinâmica das curvas e do mistério que disso decorre; ele abre e alarga um leque de dúvidas e dissabores. Se existe a sensação de um abismo, ele empresta significado à vertigem.

Os contornos psicológicos do protagonista se entrelaçam num emaranhado de signos. A dissonância das ações dos seus pares e a assimetria da natureza das coisas que o cercam causam em Tchulkatúrin estranhamento e desconforto. É extremamente rico este arco dramático. Turguêniev nos apresenta um personagem ímpar, um homem doido de inações. Nele, todo movimento cessa. Tudo lhe cai bem e lhe machuca, e nada lhe serve. Cresce e morre no seu espírito um sol sombrio. Ele “sofre” por ser lúcido e autêntico.

A mensagem do livro é clara e cruel. Não é possível haver qualquer tipo de inocência quando nos deparamos com o mistério da alma humana e seus meandros de luz e sombra combinados. Resguardando as devidas proporções, Tchulkatúrin guarda as mesmas angústias do homem contemporâneo, a mesma sensação de isolamento diante de um contexto social incerto e distópico. Do século XIX ao XXI, os melhores homens não cabem e nunca participaram efetivamente do sistema. Eles estão isolados e esquecidos.

Primeiro russo a ser reconhecido na Europa, Turguêniev influenciou grandes escritores de sua época, como Dostoiévski (Tchulkatúrin pode ser considerado um antecessor direto do anti-herói, o “homem subterrâneo” de “Memórias do Subsolo”, 1864). Foi também um dos primeiros a reconhecer o talento de Tolstói. Poeta, também foi dramaturgo. Ivan Turguêniev morreu na França, em 1883.