ARTES VISUAIS

Samba do desconforto popular

Exposição reúne oito obras do artista Nuno Ramos, sendo seis inéditas, incluindo um aquário que parece deformar o CCBB

Qua, 27/04/16 - 03h00
Trabalho. Nuno fez dezenas de testes pessoalmente para garantir a funcionalidade do andaime-órgão | Foto: mariela guimarães
Sentado no café do pátio interno do CCBB de Belo Horizonte, o artista Nuno Ramos observa um andaime de quase 15 m de altura quase pronto. A estranha estrutura, metade instalação, metade instrumento musical, é chamada de “órgão-andaime” e foi planejada por ele à base de ferros, tábuas, flautas e pedaços de um órgão para tocar repetidamente o “Samba de Uma Nota Só”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. À primeira impressão, “O Direito à Preguiça”, que abre temporada hoje no CCBB-BH, sugere um cenário industrial no aconchegante pátio interno do centro cultural, como um convite ao trabalhador exausto exercitar o ócio ouvindo samba. Mas a provocação de Nuno Ramos não é tão óbvia – e nada confortável.

“Essa obra é um acesso ao trágico do país. O samba sugere o descanso e a malemolência de sempre poder dar um jeito. Mas tocando em um órgão, de viés pesado e sombrio, e sobre um andaime, base da produção braçal do trabalhador comum, existe uma referência àqueles que não conseguiram dar um jeito. Esse direito à preguiça também é um lugar de inércia, o lugar de sempre. E essas pessoas, como é que elas ficam?”, questiona o artista.
 
Apesar de ser inspirada na obra de Paul Lafargue – genro de Karl Marx –, “O Direito à Preguiça” de Nuno Ramos não se resume a questionar a ideia de jornadas exaustivas vendidas como trabalho dignificante – a exemplo da realidade dos parisienses do séculos XIX –, tendo no direito ao ócio, pelo menos, uma porta aberta para a salvação, como sugere a publicação de Lafargue. 
Ao contrário de fechar os olhos, Nuno Ramos parece querer dilatar a pupila e apurar os ouvidos de espectadores – e talvez levá-los a perceber que o ócio ainda não os salvou do mesmo lugar fundo da invisibilidade. “É uma interpretação de que há uma certa decepção no ar. Algo que continua a não dar certo, como os tempos contemporâneos têm mostrado”, completa, em referência ao Brasil de 2016, que vive a segunda crise democrática mais grave de sua história, camuflando os mesmos abismos sociais de séculos atrás.
 
Por isso, o desconforto dessa estagnação está estampado em “Samba de Uma Nota Só”, composição que ironicamente explora diversas variações em uma linha principal de melodia de apenas um tom. “Vamos ter momentos em que a música reproduz apenas uma nota, como uma materialização literal do título da música, como um tilte mesmo, criando a sensação de desconforto. Vamos ver como as pessoas irão reagir entre a beleza e o desconforto”, diz Nuno.

CRIAÇÃO. Para provocar o público e materializar o órgão-andaime de quase 15 m de altura, Nuno Ramos trabalhou em parceria com o compositor e construtor de instrumentos mineiro Leandro César, aluno de Marco Antônio Guimarães, um dos fundadores do extinto grupo Uakti.

Leandro visitou o ateliê do organista alemão Manfred Worlitschek, em Santa Maria (RS), onde estudou a viabilidade da obra. Foram três dias de estudos e ajustes para chegar à forma ideal para o andaime-órgão capaz de reproduzir 106 notas musicais a partir de 106 flautas, com medidas que variam de 2,80 cm até 6 cm. “Lá, eu percebi que os tubos dos órgãos deveriam ser ajustados artesanalmente e que poderíamos tocar até 30 flautas juntas. É um processo artesanal de muitos testes e de precisão”, analisa Leandro. Uma precisão atrelada diretamente à tecnologia. 

Na parte eletrônica, Sara Lana e Rodrigo Borges cuidaram de transformar a partitura de “Samba de Uma Nota Só” em linguagem eletrônica, por meio de um software que controla e modifica a execução da música, sendo possível “tocar” o órgão por um programa de computador. 

“Eles basicamente convertem o sinal MIDI em uma linguagem eletrônica que o órgão-andaime entende a partir do software. E aí, a complexa estrutura, com tubos de ar, flautas, canos e fios faz o trabalho de soar bem. É o que esperamos”, diz Leandro.
 
Agenda

O QUE. Abertura da exposição “O Direito à Preguiça”, de Nuno Ramos, que agrega nove obras do artista paulista.

ONDE. CCBB (praça da Liberdade, 450, Funcionários)

QUANDO. De hoje até 27 de junho, com visitações de quarta-feira à segunda-feira, entre 9h e 22h

QUANTO. Entrada gratuita 

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