Música

Samba, plural e feminino

Ritmo que tornou a canção brasileira conhecida no mundo todo traz cada vez mais mulheres assumindo as rodas

Por Raphael Vidigal
Publicado em 13 de outubro de 2018 | 03:00
 
 
Giselle Couto, Cinara Ribeiro e Marina Gomes Cristiane Mattos

Presidente da República em 1917, o mineiro Venceslau Brás teve que ser afastado do cargo durante um mês por motivo de saúde. Acometido por febres, náuseas e dores que nunca cessavam, ele acabou recorrendo a Tia Ciata, prestigiada mãe de santo do Rio de Janeiro. Os conhecimentos sobre ervas medicinais de Ciata vieram a curar o presidente, que, como agradecimento, permitiu a ela organizar rodas de samba em seu terreiro sem que houvesse a repressão policial.

Foi nesse contexto que, naquele mesmo ano, surgiria o primeiro samba identificado como tal. Enquanto Ciata cozinhava, Donga, Sinhô, Mauro de Almeida, João da Mata e outros bambas improvisaram os versos de “Pelo Telefone”, cuja autoria rende polêmica até hoje. Um século depois, a assimilação da presença feminina no gênero que tornou a música brasileira conhecida no mundo todo ultrapassou o cargo de anfitriã e tem se estendido, a cada dia mais, para todas as suas áreas de atuação.

No próximo dia 24 de novembro acontece o Primeiro Encontro Nacional de Rodas de Samba de Mulheres. A ideia surgiu no Rio de Janeiro, com a sambista Dorina, que logo recebeu o incentivo de Teresa Cristina, Beth Carvalho, Leci Brandão e de dois grupos formados só por mulheres: Moça Prosa e O Samba Que Elas Querem. Com eventos no Brasil inteiro e em capitais como Brasília, Maceió, Rio, Fortaleza e São Paulo, o movimento pretende demarcar, justamente, a força das mulheres no samba.

A filosofia alicerça tanto a concepção quanto a estruturação da iniciativa, como explica Aline Calixto. “Além de cantoras e instrumentistas, todas as produtoras, fotógrafas e demais atribuições técnicas ficaram a cargo de mulheres”, afiança a carioca criada nas Minas Gerais. Em Belo Horizonte, a celebração acontece no Contemporâneo Gastrô Show (rua Rio Grande do Norte, 4, Santa Efigênia), das 17h às 21h.

União. Além de Aline, estão confirmadas as participações de Marina Machado, Babaya, Cinara Ribeiro, Giselle Couto, Marina Gomes, Elisa Pretinha e do grupo Batuque Beauvoir, entre outras. “Desde que o samba surgiu, ele sempre teve um ambiente machista. Quantas instrumentistas talentosas não tiveram as mesmas oportunidades que os homens? Quantas não foram diminuídas e invisibilizadas fazendo as mesmas coisas e até com mais qualidade?”, questiona Aline, que ainda nota essa discrepância numérica e de oportunidades no meio, o que só realça a importância da empreitada.

“O cenário tem se modificado pela consciência das mulheres, que estão mais unidas, parceiras e determinadas a denunciar todo tipo de discriminação e preconceito. Isso é latente. O mérito é único e exclusivo de todas nós”, completa a cantora e compositora.

Cena. Em BH, as rodas femininas também têm se avolumado. Além do Samba na Roda da Saia, idealizado por Rosane Pires, a capital conta com o Batuque Beauvoir, grupo formado há dois anos, o Tamba Tajá e o Samba de Rainha, conduzido por Cinara Ribeiro. “Canto músicas das nossas maiores sambistas, como Clara Nunes, Jovelina Pérola Negra, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara”, enumera Cinara, que apresenta o projeto uma vez por mês no Dalva Botequim, na Savassi.

Outro ponto de encontro das sambistas mineiras é o Quintal da Jabú, que abre suas portas para o ritmo no bairro Concórdia. Analu Braga, percussionista do Batuque Beauvoir, conta que caiu nessa história por acaso. “Eu não decidi nada, sou autodidata e, passando para pegar ônibus no Padre Eustáquio, descobri as rodas de samba e choro que aconteciam no Cartola Bar e então comecei a dar canja, aí foram me chamando, e eu fiquei sambista”, informa Analu.

Compositoras ainda enfrentam preconceitos

Historicamente, as mulheres foram conduzidas no samba para o lugar de intérpretes. Atualmente, elas jogam essa barreira abaixo e ocupam sem restrições o posto de instrumentistas. Mas o lugar da composição parece ainda resistir ao talento feminino.

“É difícil ser reconhecida como se deve, as pessoas desconfiam, perguntam qual foi nossa contribuição naquela música”, relata Giselle Couto, que em 2017 lançou um EP de músicas autorais. “É fundamental abrir todas essas portas”, ressalta a sambista, que em 2016 participou do disco coletivo “Waldir Silva em Letra & Música”.

Aline Calixto foi outra que em “Serpente”, seu álbum mais recente, deu vazão a dez composições autorais. “Componho desde 2003, mas agora me senti mais confiante para investir nessas músicas”, revela a cantora.