“Quando o apito da fábrica de tecidos/ Vem ferir os meus ouvidos/ Eu me lembro de você”. O samba-canção escrito por Noel Rosa e colocado em rotação na voz de Aracy de Almeida em 1933 não faz parte do repertório que Caetano Veloso, 75, traz este final de semana a Belo Horizonte, com a turnê “Caetano Moreno Zeca Tom Veloso”, em que se apresenta ao lado dos três filhos. Mas sua introdução aparece aqui porque, de alguma maneira, a música “Três Apitos” permanece em Caetano desde que seu pai, Zeca – apelido que rendeu ao filho do meio do bardo tropicalista o nome de batismo – o instigou a prestar atenção especial, ainda menino. “Nunca saiu da minha cabeça”, admite o autor de “Alegria, Alegria”, ao eleger os versos mais marcantes de sua existência.
A união familiar que o músico traz à baila no novo show não “nasceu ontem”. “Para mim é uma alegria enorme poder estar junto com eles. Convivemos num universo de criação artística musical como famílias de circo são ligadas à vida circense. A ideia partiu de mim. Era um sonho acalentado já há uns três anos. Demorou até todos poderem e quererem”, confessa. Tanto é verdade que, no pequeno texto de apresentação, Caetano dedica o espetáculo às progenitoras de seus filhos (Dedé Gadelha e Paula Lavigne) e “à memória de minha mãe”. Dona Canô (1907-2012), aliás, citada ao longo dos anos em diversas canções do irmão de Maria Bethânia, foi outra que não se fez de rogada quando instada a escolher sua música favorita de Caetano, no caso a que diz “por isso uma força me leva a cantar/ por isso essa força estranha”, feita para Roberto Carlos.
“‘Força estranha’ está lá. Mas ‘Motriz’, que é uma canção que eu adoro, não. Tem outras referências a minha mãe nas canções, inclusive numa importantíssima, mas praticamente desconhecida. Se fôssemos botar ainda mais referências a ela, acho que o show ia ter três horas de duração”, brinca. “Motriz” (“traçado em luz e em tudo a voz de minha mãe”) foi lançada por Bethânia em 1983 e jamais gravada pelo irmão. E tudo leva a crer que a canção “praticamente desconhecida”, embora o músico não confirme, seja “Ofertório”, composta em 1997 para celebrar os 90 anos da matriarca da família Veloso. Além delas, outras 28 completam o set list, incluindo um bis generoso com quatro números.
“O show foi se construindo de modo orgânico. Havia coisas de Zeca que eu fazia questão que estivessem lá. Tom, que gosta de tocar, mas não de cantar, queria só uma dele. E Moreno tem um repertório já extenso e de conhecimento público. Como ele está morando na Bahia, Zeca, Tom e eu primeiro fizemos vários ensaios sem ele. As escolhas foram se firmando quando Moreno se juntou a nós no Rio”, explica Caetano. Da lavra do filho mais velho, comparece “How Beautiful Could a Being Be”, primeira música só de Moreno a ser gravada por Caetano, em 1997, além da parceria que os dois fizeram quando o músico, que hoje tem 44 anos, tinha apenas 9 e criou a letra para a melodia de “Um canto de Afoxé Para o Bloco do Ilê”, em 1982.
Além de apresentar a praticamente inédita “Todo Homem”, Zeca, 25, também teve uma parceria com o pai escolhida, “Você Me Deu”, lançada por Gal Costa em “Estratosférica” (2015). Já o caçula Tom Veloso, 20, apresenta duas de sua lavra: “Clarão” e “Um Só Lugar” (parceria com Cezar Mendes).
“Acho que canto algo em todas as canções dos três. Em algumas, só um refrão, uma segunda voz. Em outras, estrofes inteiras”, conta Caetano, que aproveita para desfiar elogios aos rebentos, valendo-se da admiração deles por outros músicos. “Fico orgulhoso de Tom admirar Milton (Nascimento), isso mostra que ele é musical e tem gosto. E Zeca é um observador muito inteligente da música. Uma noite ele ficou siderado ao ouvir (a música) ‘Curumim’ (1989), de Djavan, que é um músico que ele já admirava muito. Mas o mais excitante foi Djavan demonstrar admiração por uma composição de Zeca e pelo modo como ele a canta. É a canção ‘Todo Homem’, que me impressionou muito quando ele me mostrou, faz mais de um ano. Pedimos a ele que a cantasse no programa do (Pedro) Bial (na rede Globo) e depois eu recebi dezenas de e-mails de pessoas as mais variadas dizendo-se encantadas com a canção”, assegura, sem permitir que a alcunha de “pai coruja” o leve a sentimentos de outra ordem.
“Ciúme? Não é o meu forte. E como eu iria ter ciúmes por meus filhos amarem figuras como Milton e Djavan? Para este show, Tom cedo pediu que cantássemos ‘O Seu Amor’, de (Gilberto) Gil. E assim fizemos”, observa o baiano de Santo Amaro. Como era de se esperar, Caetano toma conta da maior parte do repertório. Além da inédita “Alexandrino”, espécie de funk onde o cantor cita números de um a 12 na primeira parte, ainda há canções do porte de “Reconvexo”, “Gente” e “Alguém Cantando”. “Muitas das minhas músicas foram escolhidas por eles. Tom e Zeca me fizeram cantar ‘Trem das cores’. Depois Zeca quis que houvesse canções óbvias minhas, os sucessos. Mas nada resulta óbvio no contexto do show. Também tenho parcerias com Zeca e com Moreno. Uma parceria com Tom, inédita e muito bonita, ficou arquivada, deixamos para mais tarde. O mundo ainda não está pronto para recebê-la”, provoca esse eterno orador do tempo, que não perde a sua verve tropicalista.
'Verdade Tropical' e funk
Em 1997, o movimento de olhar para as memórias e, ao mesmo tempo, refletir sobre a música brasileira, levou Caetano Veloso a conceber o livro “Verdade Tropical”, onde, entre outras peripécias, descrevia sua híbrida formação musical e traçava um panorama amplo do Tropicalismo. Vinte anos depois, as ondas desta aventura o alcançaram novamente. “Fui levado a escrever uma nova introdução. Fiz alguns comentários sobre coisas já escritas no livro. São observações fragmentárias. Não há uma reflexão organizada sobre o desenvolvimento da música brasileira nesses vinte anos. Há mais confissões sobre o que senti quando terminei de escrever o livro e alguma discussão um tanto irresponsável sobre críticas que foram feitas a ele”, elabora.
Além do prefácio, a publicação traz uma novidade visual: a capa, desta feita, mostra um jovem Caetano vestido de capa vermelha e com seus encaracolados cabelos ao vento. E não pense você que este septuagenário senhor para por aí: apesar do “disfarce”, o músico já dá passos em outras direções. “No momento eu estou 100% concentrado no show com meus filhos. Compus duas músicas novas para isso, sendo que só uma está no show. A outra, em parceria com Tom, está, como já disse, engavetada. Quando eu estiver planejando novo disco de inéditas, não necessariamente de canções inéditas, mas de gravações inéditas, certamente essa vai entrar na lista”, entrega. As possibilidades para esse trabalho novo (talvez o primeiro em estúdio desde “Abraçaço”, de 2012) não deixam de ser analisadas pelo entrevistado. “Amo a BandaCê. Pedro Sá foi ver nossa estreia agora no Rio e uma das minhas maiores alegrias foi ouvi-lo dizer, no final, que tinha gostado e que ainda estava emocionado. Se voltar a gravar com ele, Marcelo e Ricardo será uma felicidade. Mas outra pessoa que me comoveu ao me dizer que tinha achado o show muito bom foi Jaquinho Morelenbaum. Tenho vontade de fazer algo com ele no disco novo que vier a fazer”, especula. “O que mais me inspira a fazer música é a própria música. Djavan me dizer as coisas que disse sobre esse show com meus filhos me anima a ter ideias, a fazer coisas novas. Djavan, como Milton, Gil ou Jaquinho, é a própria música falando”, define.
Funk. Não vem de hoje a ligação de Caetano com o funk carioca. Em 2001 ele incluiu um trecho de “Um Tapinha Não Dói” (música de MC Nandinho e Dennis DJ) na turnê de “Noites do Norte”. No Carnaval deste ano, um vídeo onde interpreta “Me Libera, Nêga” viralizou nas redes sociais. “Eu ouvi na Bahia, no verão, na internet. Um amigo me chamou a atenção para o vídeo do MC Beijinho, que se chama Ítalo, algemado, no fundo de um carro de polícia em que era levado para a prisão, cantando essa sua composição sublime”, exalta. A canção ganhou notoriedade quando a detenção do autor pelo roubo de um celular foi filmada e, na ocasião, ele cantou o refrão que se tornaria hit.
“Gosto de funk desde que o fenômeno começou no Rio. O livro de Hermano Vianna (“O Mundo Funk Carioca”, 1988) sobre o assunto é um clássico. A reação inicialmente negativa da crítica, sobretudo de certa crítica paulista, era falta de sensibilidade, de cultura e de inteligência”, defende Caetano, que volta a estimar a convivência com os filhos para abrir este leque de opções musicais. “Meus filhos me mostram muitas coisas. No caso do funk, Tom é o maior amante e conhecedor. Zeca valoriza as programações, as produções, muitas vezes toscas, mas inventivas. Ele me mostra muita coisa boa nova do pop experimental. E Moreno é um sábio que me mostrou Buika, certas canções napolitanas e a música do Mali”, destaca.
Em se falando de música pop, não há como esquecer que o principal fenômeno do estilo vem hoje das conhecidas terras tropicais incensadas por Caetano há “milênios”. “Fiquei adorando Anitta ao ouvi-la num ensaio para uma premiação do Multishow. Ela cantava como uma americana já passada pelo autotune. Kassin foi quem me chamou a atenção, eu estava na plateia esperando minha hora de ensaiar e pensava que Anitta estivesse dublando gravações de estúdio. Kassin me fez ver que ela estava cantando ali mesmo. Fiquei pasmo”, assume. Na abertura das Olimpíadas do Rio em 2016, Caetano subiu ao palco acompanhado por Gilberto Gil e a intérprete de “Bang”. “Acho que ela merece sucesso de qualquer tamanho”, assevera o compositor, que continua de olho no que acontece por aí.
“Mas faz uma semana eu ouvi pela (rádio) FM O Dia um show ao ar livre em que (a cantora) Ludmilla cantava e também era a apresentadora. Fiquei maravilhado com a qualidade do canto dela, com a segurança e a musicalidade. Já a tinha achado excelente no show de Roberto Carlos, faz um tempo, e há na internet vídeos dela dando show de domínio vocal”, aplaude o músico. “Assim, é algo de grande importância para mim que meninas de áreas precarizadas da nossa sociedade produzam arte de tão alta fatura. Isso é o que nos pode dar esperança”, aponta.
Repertório do show
“Alegria, Alegria”
“O Seu Amor”
“Boas Vindas”
“Todo Homem”
“Jenipapo Absoluto”
“Um Passo à Frente”
“Clarão”
“De Tentar Voltar”
“A Tua Presença Morena”
“Trem das Cores”
“Um Só Lugar”
“Alexandrino”
“Oração ao Tempo”
“Alguém Cantando”
“Ofertório”
“Reconvexo”
“Você me Deu”
“O Leãozinho”
“Gente”
“Sertão”
“Não me Arrependo”
“Um Canto de Afoxé para o Bloco do Ilê”
“Força Estranha”
“How Beautiful Could a Being Be?”
Bis
“Canto do Povo de um Lugar/Um Tom”
“Deusa do Amor”
“Está Escrito”
Capa do disco “Joia” sofreu nova censura
Fernanda Young, a escritora e apresentadora, postou, nessa sexta-feira (6), que a capa do disco “Joia”, de Caetano Veloso, foi removida pelo Instagram. “Ela já havia sido censurada em 1975, durante a ditadura militar”, lembrou.
Na capa, Caetano, sua primeira mulher, Dedé Gadelha, e o filho Moreno posam pelados. “O que se vê ali é amor e respeito, acolhimento, comunhão com a natureza (...) O pervertido é aquele que censura, pois o errado habita na cabeça maldosa dele”, escreveu.
Reação. Em reação às acusações de que obras de arte seriam criminosas, artistas reunidos na casa de Paula Lavigne na última quinta-feira decidiram recorrer à Justiça para se defenderem. Eles também vão lançar a campanha de conscientização “342 artes” baseada em vídeos. (Da redação)
Agenda
O Quê. Show “Caetano Moreno Zeca Tom Veloso”
Quando. Neste sábado (7), às 21h, e domingo (8), às 19h.
Onde. Grande Teatro do Palácio das Artes (av. Afonso Pena, 1.537)
Quanto. A partir de R$ 180 (inteira; plateia superior)