Memória

Site Discografia Brasileira coloca na rede gravações históricas em 78 rotações

Projeto desenvolvido pelo Instituto Moreira Salles abarca registros raros e possibilita a criação de playlists

Seg, 09/03/20 - 03h00
Carmen Miranda e Pixinguinha realizaram gravações históricas no formato de 78 rotações, que estão disponíveis no site Discografia Brasileira | Foto: Acir Galvão/Editoria de Arte

A cada giro da roleta, os músculos da face se contraíam como se pudessem interferir no destino das fichas. O vermelho e o preto da peça metálica, talhada diretamente na madeira, brilhavam diante dos olhos ao rolar dos dados. Junto à esperança, escorria também o dinheiro dos apostadores. No carteado, eles não tiveram melhor sorte.

Resultado: de pileque, saíram de lá sem um tostão furado nos bolsos dos paletós, jurando terem visto no palco do Cassino da Urca a dançarina norte-americana Josephine Baker, a Vênus Negra, que, de fato, se apresentara. Já na rua, Braguinha, Lamartine Babo e Alberto Ribeiro se deram conta de que não tinham como pagar pela condução. 

Foi então que o trio de ébrios teve a ideia de oferecer outra “moeda” ao trocador do ônibus. Os três garantiram, em uníssono, que eram cantores de rádio, e, para provar, afiaram o gogó e deram a partida na canção: “Nós somos os cantores do rádio/ Levamos a vida a cantar/ De noite embalamos teu sono/ De manhã nós vamos te acordar”. 

Assim nasceu um clássico da música popular brasileira. A gravação original, feita em 1936 pelas irmãs Carmen Miranda e Aurora Miranda, para o filme “Alô, Alô, Carnaval”, está disponível no site Discografia Brasileira (discografiabrasileira.com.br), do Instituto Moreira Salles, e nem de longe é a única preciosidade ali presente. 

A plataforma abarca o maior acervo de gravações em 78 rotações do país. O formato chegou ao Brasil em 1901 e reinou absoluto até os anos 50, quando o LP, feito em vinil, desbancou a goma-laca, matéria-prima dos discos de 78 rpm, que passou a ser considerada pesada e frágil. 

O projeto de reunir mais de cinco décadas da produção fonográfica brasileira era “um sonho antigo” do Instituto Moreira Salles, que, segundo Bia Paes Leme, coordenadora de Música da organização, “foi pioneiro em disponibilizar um acervo sonoro na internet”. Em 2001, o instituto adquiriu as coleções do crítico de música José Ramos Tinhorão e do pesquisador Humberto Franceschi, com 6.000 discos cada.

Era o pontapé inicial de um processo de organização e digitalização longo e trabalhoso. Mas, sobretudo, do ponto de vista da satisfação pessoal dos envolvidos, recompensador. “Para todo mundo que me pergunta sobre a minha paixão pelos 78 rpm, eu tento explicar que o período de construção da identidade musical brasileira começa a acontecer no século XIX, com a chegada da Corte Portuguesa. Essa miscigenação com os índios e os negros transforma nossa música. Os gêneros europeus são africanizados. Isso é o século XIX inteiro, mas a música começa a ser gravada aqui só no século XX”, informa Bia. 

Ela explica que, antes, havia apenas o registro escrito, com as partituras de polcas, choros, valsas, modinhas e lundus. “Com as gravações, temos acesso às interpretações. Esses registros são a nossa única maneira de entender como era o fazer musical daquele período. Ainda vamos dar o devido valor a isso. Somos um país que está sempre olhando à frente e olha pouco para trás. Há muita sofisticação nessas gravações. Precisamos entender o quanto isso está enraizado em nós. Produzimos uma das melhores músicas populares do mundo, e, sem dúvida nenhuma, a matriz era de muita qualidade”, afiança. 

Ao todo, são 63.324 fonogramas catalogados, dos quais 46.660 podem ser ouvidos online. O primeiro disco lançado no país, “Isto É Bom” (1902), de Xisto Bahia, está lá, assim como “Ainda Existe” (1928), raridade com Pixinguinha na flauta. 

Um nome essencial para que a iniciativa obtivesse êxito foi o de Miguel Angelo de Azevedo, conhecido como Nirez, que contribuiu para a publicação de um catálogo da Funarte em 1982, com tudo o que se sabia sobre os discos de 78 rpm. No ano passado, o Instituto Moreira Salles adquiriu o maior acervo particular do Brasil, que pertencia a Leon Barg, criador da gravadora Revivendo. 

Editor do site, o cantor Pedro Paulo Malta, 43, diz que se sente “em um parque de diversões”. Ele é o responsável por postagens semanais com histórias saborosas, como a mudança da gravação mecânica, realizada com cones e cornetas, para a elétrica, com microfones, que beneficiou artistas como Francisco Alves. “Ele começou cantando com muita força, de forma operística, e continuou a vida inteira com muita voz, mas passou a modular melhor o canto”, observa o entrevistado. 

Malta ainda convidou a historiadora Rosa Maria Araujo e o pesquisador Jairo Severiano para criarem playlists no site, algo que está ao alcance de qualquer navegante que cadastrar um login. O violonista mineiro Humberto Junqueira foi um dos que se aventuraram a explorar a plataforma, onde encontrou “Fiz um Samba”, de José Borba, em gravação de 1940 que traz Dino 7 Cordas ao violão. “Essa ‘levada’, conhecida como ‘violão tamborim’, teria sido inventada pelo Dino”, conclui Junqueira.

Raridades:

Araci Côrtes foi a primeira cantora a gravar “Linda Flor”, em 1928, música de Henrique Vogeler e Luiz Peixoto que faria muito sucesso com Dalva de Oliveira. Um segundo registro da canção, feito por Araci em 1953, está disponível no site, assim como outros 73 fonogramas da artista. A maior curiosidade é a presença de “Denguinho”, uma das únicas composições de Araci, ao lado de César Cruz.

O sucesso espetacular da irmã acabou encobrindo o talento de Aurora Miranda. Claro que ser irmã de Carmen também abria portas para a cantora, que era seis anos mais nova. No site, é possível encontrar 171 fonogramas de Aurora. O mais antigo é “Cai, Cai, Balão”, de Assis Valente, gravado em dueto com Francisco Alves em 1933. “Cidade Maravilhosa”, de André Filho, aparece em três versões.

Em 2019, o centenário de nascimento do cantor Blecaute foi comemorado de forma tímida, quase indiferente. Mas o cantor foi um dos principais intérpretes de marchinha da música brasileira, como comprovam os 129 fonogramas disponíveis no site, que englobam 54 composições autorais. Entre as mais conhecidas estão “Maria Candelária”, “General da Banda” e a autoral “Natal das Crianças”.

Atuando no programa “A Praça da Alegria”, o músico Chocolate ficou mais conhecido como comediante. Apesar disso, ele criou canções que fizeram muito sucesso, como “Canção de Amor”, parceria com Elano de Paula lançada por Elizeth Cardoso, e “Vida de Bailarina”, feita com Américo Seixas para Angela Maria e regravada por Elis Regina. Há 13 fonogramas cantados por ele no site.

Nos teatros de revista que estrelava, Dercy Gonçalves imitava Araci Côrtes, Carmen Miranda, Vicente Celestino e Orlando Silva, além de também dar voz a músicas de Noel Rosa, Luiz Peixoto e Custódio Mesquita. Em 1957, na chanchada “Absolutamente Certo”, ela cantou uma versão pra lá de escrachada do sucesso “Jura”, de Sinhô, com direito a vários gritos. O fonograma está disponível no site.

Elvira Pagã foi uma figura polêmica da música brasileira. Na década de 50, ela promoveu o nudismo no Brasil, posando sem roupa em diversas ocasiões. Atriz, vedete, cantora e compositora, começou a carreira ao lado da irmã e foi homenageada em música por Rita Lee. No site, há 23 fonogramas de Elvira, com 14 composições. O primeiro sucesso, “Arrastando o Pé”, de 1944, também está lá.

Reconhecida como a primeira naturista do Brasil, a dançarina Luz del Fuego nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, assim como Roberto Carlos. Famosa por se apresentar nua com uma cobra, ela foi brutalmente assassinada por pescadores em 1967, aos 50 anos. Uma gravação rara de Luz para “A Los Toros”, marchinha de Nélson Teixeira e Alencar Terra, está no site.

Baterista, pintor, cantor, compositor e comediante, o carioca Monsueto foi um verdadeiro artista multimídia bem antes de o termo existir. São dele os sons indecifráveis ao final de “A Tonga da Mironga do Kabuletê”, de Toquinho e Vinicius de Moraes. Monsueto também é autor das célebres “Me Deixa em Paz” e “Mora na Filosofia”. No site, há 15 fonogramas em que ele canta e 68 composições.

A promissora carreira do cantor Vassourinha foi interrompida de forma precoce quando ele morreu em 1942, com apenas 19 anos, vítima de uma osteomielite. Com 12 anos, o cantor paulista já havia estreado no rádio. As únicas 12 gravações realizadas por Vassourinha estão no site, como “Seu Libório” e “Emília”, consideradas por Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano como exemplares.

Nascido em Bom Despacho, no interior de Minas, o cavaquinista Waldir Silva chegou a ensaiar uma carreira no Rio, onde conheceu e se tornou parceiro de Zé Ramalho, mas optou por se fixar em Belo Horizonte. O choro “Telegrama Musical”, feito em código morse, chamou a atenção de Juscelino Kubitscheck e o levou a ter músicas em novelas. Além dele, há oito fonogramas de Waldir no site.

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