Ocupação

Teatro e convívio com a rua

Experiências de grupos teatrais de Belo Horizonte despertam interesse pela relação com a vida no espaço público

Qua, 05/07/17 - 03h00
Manifesto. “Escombros da Babilônia” ocupa a rua Manaus, no Santa Efigênia, com temas que são urgentes para a atualidade | Foto: André Oliveira/Divulgação

“A rua é, por excelência, o espaço do trânsito, do deslocamento, do devir. De uma esquina a outra, não se sabe o que está por vir, o que pode nos acontecer, quem vai passar. O movimento é constante e difícil de acompanhar. De firme mesmo, só o ‘teto-céu’ sobre nossas cabeças”.

A sinopse de “Nossa Senhora (do Horto)”, espetáculo do coletivo Toda Deseo, de 2016, abre caminhos para a observação, além do próprio trabalho, de recentes experiências teatrais de ocupação do espaço público, especialmente de grupos que não têm em sua vocação inicial o estar na rua.

É o caso do próprio Toda Deseo, que, depois de vivenciar a rua pela primeira vez, com a intervenção Campeonato Interdrag de Gaymada, intensificou a experiência em um cortejo pelas ruas do bairro Horto, problematizando, ao longo do trajeto, questões que tangem as relações de gênero.

Aproximadamente um ano depois, foi a vez de o Grupo Espanca! deixar por um instante as salas de teatro e estrear seu primeiro espetáculo de rua, “PassAarão”, um convite ao público para vivenciar algumas possibilidades da rua Aarão Reis, no hipercentro de Belo Horizonte. E, ainda mais recente, “Escombros da Babilônia”, do núcleo de teatro do Espaço Comum Luiz Estrela, terminou sua temporada de estreia no último domingo, movimentando, pela rua Manaus, um público diverso, curioso pelo manifesto explosivo, com feições de Teatro Oficina, que tanto desperta interesse quanto assusta alguns moradores do bairro Santa Efigênia. “Sabemos que o Estrela dá espaço ao marginal, mas está no coração da cidade, e friccionamos também isso”, aponta Rafael Bottaro, que assina a direção ao lado de Manu Pessoa.

Respeitando as peculiaridades de cada um dos trabalhos citados, vistos em conjunto eles despertam a atenção para experiências de ocupação da rua, provocando outros olhares e vivências para o estar no espaço público, estimulados pela manifestação artística. Não se trata de dar a essas experiências o título de inaugurais ou inéditas. Tampouco de desconsiderar o que vêm fazendo, há anos, grupos dedicados à experiência da rua, como o Galpão, o Maria Cutia e uma lista de tantos outros nomes que poderiam ser citados. Trata-se apenas de desdobrar os, no mínimo, curiosos e recentes experimentos de outras formas de ocupar e de se relacionar com os espaços públicos por meio do teatro.

“Se pensarmos hoje o que tem acontecido politicamente no país, a ideia da ocupação tem sido mais intensa, nas greves e nas manifestações artísticas. Quando decidimos ir para a rua, queremos restaurar determinadas relações que a arte e esse espaço público podem ter”, comenta o ator Rafael Bacelar, integrante do Toda Deseo e também do elenco de “Escombros da Babilônia”.

Diferentemente de “Nossa Senhora (do Horto)” – que realiza uma dramaturgia um pouco mais linear, percorrendo um cortejo que expõe o moralismo e a tradição mineira, em especial no que toca a identidades sexuais e de gênero, a partir de críticas às instituições da família, da Igreja e até da escola –, “Escombros da Babilônia” e “PassAarão” se constroem fundadas em uma profusão de assuntos, numa opção por dar a ver questões sem necessariamente aprofundar-se em determinado tema.

“Nós entendemos que a rua, em especial no hipercentro, é um fragmento capaz de mostrar o que uma cidade vive em relação às suas contradições, lutas e diversidades. E, dentro do coletivo, isso também era muito presente. Estamos discutindo diversas questões identitárias que falam de cidadania e do direito de viver nela, com suas lógicas de poder. A peça fala dessa cidade que a gente acredita que é diversa e em que nada deve ser silenciado, escondido ou marginalizado. Tem a mulher, a mulher negra, as pessoas em situação de rua, a comunidade LGBTQ, a juventude, as pessoas que acreditam na arte como transformação. Tudo isso está ali porque nos interessa”, afirma Aline Vila Real, diretora de “PassAarão”.

A mesma fragmentação de temas urgentes da atualidade se realiza com o núcleo de teatro do Luiz Estrela, que, desde o primeiro trabalho, buscou dar visibilidade ao Espaço Comum e aos temas que envolveram a vida de Luiz Otávio da Silva, a Estrela. “A situação de morador de rua, a homossexualidade, questões de saúde mental, o artista. Essas bandeiras vêm também para o Espaço. E, além disso, queríamos dar voz ao lugar de enunciação de cada um que estava ali no grupo. São cerca de 66 pessoas no elenco, entre atores e não atores, e eles puderam escolher seus textos, falar do que acham importante para a sociedade”, comenta Bacelar.

Em todos os trabalhos, as relações exploradas entre artistas, público e a rua são o que mais desperta a atenção. Em “Nossa Senhora (do Horto)”, a praça, os muros e suas pichações e a boêmia de um quarteirão do bairro Horto são vividos em cena. O trabalho finaliza-se no convívio entre artistas e público com um pagodão no chamado Bar da Rita. Em “Escombros da Babilônia”, em certos momentos o público é convocado a entrar em cena, podendo circular por entre os atores e interagir com uma diversidade de discursos, além de ser introduzido em um casarão do Luiz Estrela, numa segunda parte do espetáculo.


Cidade

Dramaturgias porosas em espaços públicos

Entendendo as peculiaridades de cada espaço ocupado, é em “PassAarão” que a radicalidade do convívio com a rua se estabelece enquanto princípio do trabalho. Ao longo do cortejo que se inicia na rua Sapucaí, passa pelo metrô e percorre a Aarão Reis até o viaduto Santa Tereza, a rua adentra o espetáculo, com o convite ou não dos artistas. Os moradores do espaço interagem e cortam a apresentação, o ônibus passa e até a intervenção da Polícia Militar entra em jogo.

“Essa foi uma primeira decisão da direção, trabalhar uma abertura para a rua e entender que os acontecimentos que não dominávamos e não temos como prever fazem parte do trabalho. Tínhamos que nos preparar para poder estar e conviver com tudo isso que pudesse surgir. Isso faz parte do trabalho, muito específico a cada dia”, comenta Aline.

Ela conta, como exemplo, o caso de Úrsula, artista, mulher, trans, negra, moradora da região, que conviveu com o grupo durante o processo de criação. “Um dia ela me perguntou se poderia entrar em cena para fazer um contemporâneo. Ela entrou na cena final e dançou lindamente, com noção de tempo, de espaço, de performance. Isso podia acontecer ou não. Tinha dia que ela não aparecia. O espetáculo precisava ter abertura para isso, mas sem depender disso. O que fica é um desafio contínuo de estar aberto para a rua e os espaços, para as reações do público e também para as nossas reações diante o espaço, diante do outro”, conta a diretora. (JA)

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