Racismo

Um chamado ao protagonismo  

Polêmica sobre falta de indicados negros no Oscar reverbera entre quem faz arte no Brasil

Dom, 31/01/16 - 03h00
Cia dos Comuns (RJ). Para criar espaços de representatividade, o grupo, idealizado por Hilton Cobra, é formado exclusivamente por atores e atrizes negras | Foto: Andre Pinnola Fotografia

No emaranhado dos vestígios de uma história de exploração e suposta supremacia de raças, a tão celebrada diversidade dos povos se faz ausente nas produções artísticas, o que desperta algumas perguntas: quais são as histórias narradas? Quais imagens reveladas? Por quem e de que forma?

As antigas indagações ganharam, há pouco, novo vigor ao passarem por uma janela de visibilidade mundial. Sem indicação de atrizes, atores e diretores negros por dois anos consecutivos no Oscar, o cineasta e ator norte-americano Spike Lee questionou a cerimônia que está, aos seus olhos, cada vez mais branca.

“O que ele fez foi um chamado, um pedido a todos os negros por atitudes contundentes porque a elite branca se faz na nossa falta de coragem. Ele foi mexer com o Oscar, que parecia ser inatingível. Infelizmente, não conseguimos reagir da mesma forma quando o assunto é Rede Globo”, aponta Hilton Cobra, ex-presidente da Fundação Palmares e idealizador da Cia. dos Comuns, grupo de teatro paulista formado por elenco negro.

Deixando a pele falar e ampliando a discussão para outros campos artísticos além do cinematográfico, o Magazine ouviu de militantes, artistas e pensadores reflexões que tocam o reconhecimento do artista negro e os caminhos que percorre para produzir sua arte.

Do gesto de Lee, salta ao debate a necessidade de políticas de cotas, como pronunciou o diretor a respeito das premiações do Oscar. “Quando o assunto são as cotas, adoto a posição: são sempre a segunda pior coisa que pode haver com relação à redistribuição de lugares sociais no Brasil e no mundo. A primeira é não fazer nada. Porque quem é contra não apresenta outra sugestão pra acabar com essa quimera”, diz Ricardo Aleixo, poeta, artista plástico e músico mineiro.

Para ele, a experiência que vivemos nas universidades deve ser levada também a outras áreas, inclusive, para o campo das artes. “Temos que desnaturalizar o racismo e a invisibilidade do negro e naturalizar sua presença em todas as instâncias da vida artística e cultural. Não interessa por quais meios”. Mas ele não deixa de mencionar sua preferência. “Melhor seria se o reconhecimento não tivesse que ser conquistado assim”.

A ensaísta e professora Leda Martins constrói seu ponto de vista olhando para algo ainda anterior às premiações. “Precisamos pensar na exposição e na visibilidade do artista, porque as oportunidades para expor e realizar um trabalho artístico não são democráticas. Mas a relação das formas de produção e do reconhecimento do trabalho não é direta. O que quer dizer que os artistas não devem ser valorizados por serem negros, brancos, amarelos”.

A este respeito, Aleixo remonta sua trajetória íntima e manifesta o desejo de outra concepção sobre a arte negra. “Se eu pudesse, não consideraria unir essas palavras: artista e negro. A junção em si já mostra que algo está fora do lugar, do modo como a sociedade distribui as oportunidades. Faço arte desde os 11 anos e, neste momento inicial, não me via como artista negro, me via como artista”.

Percursos. Para chegarmos aos momentos de celebração e premiação dos trabalhos artísticos, parece haver, em especial no contexto brasileiro, a necessidade de darmos um passo atrás na discussão para refletir sobre o acesso aos meios e processos de produção da arte. “Como o artista vai concorrer a prêmios se ele não está em cena? Como vai ser visto se o lugar que lhe é dado é secundário? A busca é para que o trabalho seja reconhecido pela qualidade e pela competência. Mas não adianta talento se ele se mantém nas sombras”, afirma a professora Leda.

Jefferson De, cineasta paulista, chama a atenção para os caminhos que uma obra artística percorre. “Sempre penso nas instâncias que decidem, por exemplo, quais filmes devem ser feitos? Quais serão selecionados? São essas esferas, tanto aqui no Brasil como nos Estados Unidos, que nós negros não estamos representados, não fazemos parte”, lembra.

E, nesse sentido, falar em cotas parece encontrar maiores espaços de aceitação. “Os júris, os curadores, programadores e críticos de arte entram em cena em um momento importante que é o de, com vários olhares, celebrar a diversidade e reconhecer o mérito artístico. Nessas instâncias de decisão, sou favorável às cotas porque, por muito tempo, foram os homens brancos que decidiram o que deveria ser o cinema ou a arte brasileira”, afirma o cineasta, convidado no ano passado para ser curador do edital Rumos Itaú Cultural. “Minha presença entre os avaliadores passa também pela inserção de um olhar diverso”.

É pensando nestas esferas do percurso de uma produção artística que Jefferson aponta o paradoxo do Oscar. “O que chama a atenção é que a presidente da Academia (de Artes e Ciências Cinematográficas) é uma mulher negra e isso não chegou a influenciar as outras instâncias de decisão”, aponta o cineasta.

A este respeito, a revista norte-americana “Variety”, bíblia da indústria cinematográfica, tornou público o peso da responsabilidade que lhe cabe pela falta de diversidade nos filmes e entre atores premiados. “A hierarquia dos estúdios de Hollywood continua sendo um clube exclusivo, dirigido por homens brancos e uma mulher branca. As agências de grandes talentos quase não têm sócios que pertencem às minorias. E os veículos encarregados de cobrir o setor – inclusive a ‘Variety’ – só empregam poucas pessoas não brancas”, diz o texto da revista.

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