Várias noites no Pouso do Chico Rei, com Vinicius de Moraes, Astor Piazzolla e Egberto Gismonti. Outras na casa de Carlos Scliar, ao lado de Paulo e Rodrigo Pederneiras para ouvir os discos novos dos Beatles, Caetano Veloso e Chico Buarque. Altas madrugadas no Bar do Chicão, com Milton Nascimento e Nelson Angelo. Tardes e manhãs inteiras com Aldir Blanc e o início de uma parceria que perdura até hoje.

A Ouro Preto de João Bosco, 70, segundo o próprio, é uma “cidade da memória”. “Aquela cidade não existe mais, uma cidade são as pessoas que estão lá, é feita de rostos, nomes, pessoas, almas, cores, arquitetura, sons. Voltar é um pouco atiçar a sua memória nesse sentido. E Ouro Preto, para mim, é onde praticamente tudo começou”, elabora.

O mineiro de Ponte Nova, que no início dos anos 70 se formou engenheiro civil na Ufop, retorna nesta terça-feira (6) a Ouro Preto para se apresentar na Casa da Ópera, às 20h30, e comemorar a reabertura do teatro que ficou fechado por dois anos para reformas. Com 247 anos, é considerado o teatro mais longevo em atividade da América do Sul. “Lembro-me exatamente do dia em que cheguei a Ouro Preto, em 1962, e fui até o coral da cidade, que já era conhecido por ter um repertório criativo e arranjos sofisticados.

Cantavam de bossa nova a Dorival Caymmi. Já cheguei nesse clima, que, conjugado com a arquitetura da cidade, ajudou a formar minha alma, a ter uma inspiração interna que senti assim que pisei na praça Tiradentes. A partir daí, me juntei a músicos que conheci na cidade e me apresentaram uma discoteca diversificada. Passei a tocar de forma intensa. Acho que quando você está imbuído desse sentimento e sensibilidade que a cidade transmite, a música te envolve e se abre de uma forma ampla. Você começa a ouvir diferente, a captar detalhes”, sublinha.

Bosco ressalta os encontros que empreendeu em Ouro Preto com artistas de várias áreas. “Era um hábito da época, as pessoas tinham essa coisa de aglutinar, somar, especialmente o Vinicius de Moraes e o Carlos Scliar. Eles gostavam de deixar a casa aberta, literalmente. Conheci muitos pintores, fotógrafos, artistas plásticos, atores, atrizes, cineastas, escritores e, obviamente, músicos através deles. Foi em Ouro Preto que conheci a Domitila do Amaral, uma atriz de teatro fantástica, e o Ivan Marquetti, grande pintor. Hoje em dia esses encontros acontecem muito através da internet, no virtual, enquanto naquele tempo a troca de informações era física, uma coisa quente, viva”, compara.

Parceria. Também em Ouro Preto, teve início a célebre parceria de Bosco com Aldir Blanc, ainda sem a presença do letrista de sucessos do porte de “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá”, “O Bêbado e a Equilibrista”, “Linha de Passe” e tantas outras. “A história é assim: tinha um jornal na faculdade que chamava ‘O Martelo’. Eu escrevia a parte cultural. Um dia, nessa coluna, mencionei o Movimento Artístico Universitário (MAU) que rolava no Rio, do qual faziam parte o Gonzaguinha, o Ivan Lins e também o Aldir Blanc. Eu tocava sempre na noite de Ouro Preto e, numa dessas ocasiões, um amigo do Aldir que morava em Teresópolis e estava na cidade, chamado Chico Lourenço, já falecido, se aproximou de mim e falou que eu e o Aldir devíamos fazer uma parceria. Duas semanas depois, o Aldir chegou a Ouro Preto e nos conhecemos. Fomos até a casa da minha mãe, em Ponte Nova, almoçamos juntos e já começamos a compor. De primeira saíram ‘Agnus Sei’, ‘Bala com Bala’ e ‘Angra’”, recorda.

Outra composição com Blanc que estará no concerto é “Corsário”. “Eu estava em turnê, quando saiu o disco em que a Elis (Regina) cantava essa música. Foi uma surpresa para mim (a gravação foi incluída no álbum póstumo, ‘Luz das Estrelas’, lançado em 1984, dois anos depois da morte da cantora). A Elis tinha essa capacidade formidável de surpreender, porque ela não era uma pessoa razoável, ela era fora do comum, sua relação com a música extrapolava os limites do costume”, enaltece.

Repertório. Para a apresentação desta noite, Bosco promete levar ao público canções que o influenciaram. Para isso, selecionou temas de Dorival Caymmi, Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Moacir Santos, além de autorais como “Papel Machê”. Ele também vai prestar homenagem ao “arranjo antológico” que o Sérgio Mendes concebeu para “Garota de Ipanema”.

 

Novidades

Álbum de inéditas em agosto

Já está em fase de mixagem o novo disco de inéditas de João Bosco. Sucessor de “Não Vou Pro Céu, Mas Já Não Vivo no Chão”, lançado em 2009, e do retrospectivo “40 Anos Depois”, CD e DVD de 2012, o álbum chega ao mercado no próximo mês de agosto, com edição da gravadora Som Livre. Com 13 faixas, o trabalho apresenta parcerias de Bosco com o filho, Francisco Bosco, e ainda Aldir Blanc, Arnaldo Antunes, Roque Ferreira e Chico Buarque. “É a estreia da minha parceria com o Roque e fiquei muito feliz com o resultado. A música com o Chico é a ‘Sinhá’, que ele já gravou no último disco dele e que eu interpreto agora com uma outra concepção de arranjo”, conceitua Bosco.

Embora o lançamento esteja próximo, o álbum ainda não tem um título definido. “O batismo é sempre a última coisa, porque quando você acorda tem sempre uma ideia diferente, depende do seu estado de espírito naquele dia. O disco já teve vários nomes, mas só na minha cabeça. Quando ele vir à luz é possível que, enfim, tenha um nome para chamar de seu”, brinca o músico.

Com apresentações marcadas para a Alemanha em setembro e Estados Unidos em novembro, Bosco planeja a turnê para divulgação do disco a partir de 2018. “Certamente iremos a Belo Horizonte”, promete o cantor e compositor.

Intuição. O próximo disco será o 27º da carreira de Bosco, cuja trajetória fonográfica iniciada em 1973 contempla álbuns de estúdio, no formato ao vivo, acústico e trabalhos recebidos por encomenda, como a trilha sonora para o espetáculo de dança “Benguelê”, do Grupo Corpo. “Minha relação é muito intuitiva, como de quase todos os músicos brasileiros. Essa que é a nossa riqueza, porque de forma muito natural somos capazes de aliar os elementos populares com informações da música formal. Ouvi muito Villa-Lobos, Debussy, Tom Jobim, Ravel, Baden Powell e Stravinski, sempre tudo junto”. (RV)


Agenda

O quê. Show de João Bosco
Quando. Nesta terça-feira (6), às 20h30
Onde. Casa da Ópera de Ouro Preto (rua Brigadeiro Musqueira, 104, Ouro Preto)
Quanto. R$ 30 (inteira)