Dia Nacional do Samba

Martinho da Vila: ‘A história do samba é uma história de resistência’

Cantor fala sobre o recém-lançado 'Rio: Só Vendo a Vista', além de racismo, governo Bolsonaro e novidades experimentadas durante a pandemia

Por Bruno Mateus
Publicado em 02 de dezembro de 2020 | 07:06
 
 
Sobre o governo Bolsonaro, o sambista afirma: 'Tenho vergonha de ter um presidente assim' MZA Music/Divulgação

Martinho da Vila, 82, está confinado desde março. Saiu pouquíssimas vezes, dá para contar nos dedos de uma mão. O isolamento causado pela pandemia é incômodo, claro, mas o cantor e compositor não se debulha em lamentos. Ao contrário: bem-humorado, diz que está levando bem o período e agradece por se manter ativo, cheio de coisas para fazer por conta de sua profissão. “Barco parado não faz frete”, brinca. 

Na terça-feira à tarde, o Magazine bateu um papo com aquele que é uma das figuras mais representativas do samba, que comemora nesta quarta (2) seu dia nacional. São mais de 50 anos de carreira e dezenas de discos. O mais recente, “Rio: Só Vendo a Vista”, uma ode realista ao Rio de Janeiro, de título gracioso e debochado, foi lançado em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.

O álbum traz 12 temas que fazem um retrato da cidade onde ele vive desde os 4 anos. São cinco faixas inéditas e outras canções (sem os grandes clássicos) escolhidas a dedo em seu repertório. Um disco repleto de afeto familiar, “carioquismos” e sons de terreiro: uma declaração de amor ao samba e à cultura afro-brasileira. 

O que te despertou para a ideia de gravar um disco em homenagem ao Rio de Janeiro?

A ideia desse disco surgiu com a música que dá título a ele. Mandei a melodia para o compositor Geraldinho Carneiro, meu parceiro, e ele fez a letra. Achei um passeio pelo Rio de Janeiro, aí tive a ideia de fazer um álbum baseado no Rio, fui colocando músicas bem cariocas. Ele começou a ser gravado há dois anos e foi lançado agora. Seria lançado em maio, mas aí veio essa história de pandemia que não passa, e resolvemos lançar virtualmente. Esse é bem diferente do anterior (“Bandeira da Fé”, de 2018), todas as músicas têm a ver com o Rio. 

Inclusive, esse lançamento exclusivamente virtual é uma novidade na sua carreira. E no período da pandemia você também fez shows online. O que achou dessas experiências?

É interessante. Tudo que acontece de ruim acaba tendo algo de bom. Por exemplo, esse negócio de pandemia trouxe um hábito mais forte de usar e trabalhar na internet. Muita gente nem usava direito. Quando terminar a pandemia, esses hábitos não vão sair com facilidade. É muito legal uma pessoa em qualquer lugar do mundo poder escutar minha música, meu samba. Outro dia mesmo eu conversava com um amigo que mora em Israel, e ele disse uma coisa interessante: “Martinho, eu e minha família vimos sua live, gostamos muito”. Olha que legal, que coisa nova e boa. 

Essa homenagem ao Rio é feita com esperança, desalento ou um pouco dos dois?

Com esperança, embora não seja uma esperança muito eufórica. Não é uma exaltação deslavada do Rio, é um retrato da minha cidade, aonde cheguei aos 4 anos de idade. Minha relação com o Rio é fortíssima, sou carioquíssimo. Aliás, todo mundo que vem pra cá vira carioca. Se você vier morar aqui, ficar um tempo por aqui, vai virar carioca também. Às vezes, saem umas listas de 100 cariocas mais notáveis, aquela coisa, e mais de 30% são cariocas que não nasceram no Rio (risos).

O que significa esse “ser carioquíssimo”?

Ser carioca pra mim é um modo de vida, um jeito de levar a vida. A primeira coisa é ser descontraído, a descontração é uma marca carioca. A gene sorri e faz brincadeira até com as nossas próprias mazelas. Carioca é assim, ri de si mesmo. Ninguém fala de uma coisa triste com a cara fechada.  

Com que sentimento você chega a este 2 de dezembro, Dia Nacional do Samba, sendo um dos nomes fundamentais do gênero? 

A história do samba é uma história de resistência, se confunde com a história do negro brasileiro. Muitos expoentes da música, além de seus talentos criativos, foram importantes por suas atitude e integração. Noel Rosa, por exemplo. Ele fazia parte de um grupo chamado Bando de Tangarás, cantava samba, eram todos brancos, e samba era música de preto e favelado. Noel subia o morro, trocou figurinhas com Cartola e Ismael Silva, bebeu na fonte deles e trouxe o samba do morro para a cidade. Noel é dessas figuras que devem ser lembradas. E tenho muito orgulho de também ser reconhecido. A gente faz as coisas não para ser reconhecido, mas por paixão. Não sei como seria minha vida sem o samba, nunca pensei nisso, mas sei que minha atuação junto ao samba influenciou muito para que eu seja quem eu sou hoje. 

Sete dos seus oito filhos cantam no disco, algo bem familiar, naquela onda de que em casa de bamba todo mundo samba, e isso ficou bem nítido nas gravações. 

Esse disco tem muito de afeto, gosto de estar sempre com os guris, botar eles juntos. E faço isso mais porque eles são talentosos, dei sorte de ter filhos muito talentosos. Eu uso eles (risos). Eles ficam felizes, e eu também. Eles podem opinião nas coisas deles, eu também, tem sempre essa troca. A gente trabalha junto, e funciona bem. 

Como você tem levado a pandemia?

Caramba, isso está horrível. Estou há quase um ano dentro de casa. Desde março saí pouquíssimas vezes. Mas vou levando, gastando tempo, fazendo outras coisas. Minha atividade, em geral, me ajuda muito porque estou sempre ocupado. Estou aqui dando essa entrevista, amanhã (hoje) vou participar de um programa na Globo. Vou levando devagar e sempre. Barco parado não faz frete (risos). Conheci esse provérbio na roça. Nasci em Duas Barras, no interior do Rio, e lá é um lugar bastante amineirado, de cultura mineira muito marcante. Lugar de folia de reis, folclore, isso tudo influenciou minha vida. E o samba mineiro é muito forte, mineiro é bom de samba.

“Rio Só Vendo a Vista” foi lançado em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. O que tem achado das manifestações e discursos antirracistas no Brasil?

Há um avanço, o racismo é uma doença curável, como disse Nelson Mandela. E quando ele está em discussão é um bom sinal. Os avanços vêm com o choque do problema, e isso tem acontecido. É uma doença curável, mas não é fácil. A cura passa pela educação, pelo conhecimento. As pessoas vão se informando, e a cabeça vai melhorando. 

Pouco antes do Dia da Consciência Negra, a Fundação Cultural Palmares anunciou a exclusão de artistas negros vivos de uma lista de personalidades notáveis, entre eles você, Elza Soares, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Conceição Evaristo e Leci Brandão. O que essa medida representa para você? 

É uma atitude esperada. Na minha opinião, ele (Sérgio Camargo, presidente da fundação) foi colocado lá com o objetivo de esvaziar a fundação. Achei ótimo ser excluído desse grupo porque a fundação já não existe mais, não tem mais relevância com esse governo, não me sinto parte dela. Precisamos criar outro órgão, mas que não seja ligado ao governo. Aquela fundação já era. 

Por falar em governo federal, como você avalia Jair Bolsonaro nesses quase dois anos de gestão?

É um absurdo, ele não tem noção nenhuma de governo. Não gosto nem de falar dele, fico com vergonha. Tenho vergonha de ter um presidente assim tão sem noção. Às vezes, a gente não comunga com as ideias de um dirigente, mas respeita, porque essa pessoa minimamente nos representa. Agora, com esse governo fico até sem graça, ele não me representa. Dá tristeza, não gosto nem de falar. É uma tristeza profunda.